segunda-feira, 1 de junho de 2009

só agora que eu vi que dá pra por título

Buenas! Antes de mais nada, gostaria de avisar que esse é o maior escrito que eu já botei aqui. Haja paciência pra quem quiser ler. Mas também ele provavelmente vai ser o último em pelo menos um mês, talvez até um pouquinho mais. É que parece que agora vai dar certo uma viagem para a área indígena dos ianomâmi. Já peguei a tal da autorização da FUNAI e agora estou só vendo os últimos detalhes. A comunidade chama-se Maturacá. Devo passar um tempinho lá hospedado na casa de um amigo. Assim que eu aprender a pegar jacaré na dentada volto. Vou lá tomar xibé direto na veia e conversar com o pico da neblina pra ver se eu fico menos tapadinho um pouco. A Marília tem um CD dum cara aqui que ela não sabe o nome, mas que é bom demais, som de viola meio sertanejo já entrando no Nordeste. Tem uma música lá que o refrão é assim; "Eu tentei correr de mim, mas pra onde eu ia eu tava, quanto mais eu corria, mais pra perto eu chegava". Pois é. O escrito começa aí embaixo, vai como tava no computador, já tem uns dias que ele tá aqui só que eu tava com preguiça de ir até a internet. È isso então, até depois.


*


- Buenas! Continuamos aqui em São Gabriel da Cachoeira, a cidade imaginária, agora já um pouco de saco cheio de esperar as burocracias da FUNAI e outros tantos empecilhos que impedem a entrada em área indígena. Até dentista, enfermeiro e outros profissionais da saúde já contratados, às vezes ficam mais de dois meses esperando pra conseguir entrar em área, que dirá eu, mero barbudo desinstitucionalizado. É o tempo amazônico somado ao desleixo total e às politiquelas da nossa aldeia-nação Bruzundanga, vulgo Brasil. Enquanto isso aqui pela cidade continua a overdose de tradição/modernidade em extremos agudos e as setecentas e cinqüenta e duas epifanias por dia e uma vontade de falar sobre as palavras.

- Eu não sei se deu pra entender direito no meu último escrito, mas eu andei às beiras do Diazepan. "Esse lugar aqui, só na base do ansiolitico" foi meu pensamento um dia desses aí. Decididamente São Gabriel da Cachoeira não é um lugar fácil. É um lugar, estonteante, fantástico, miraculoso, deslumbrante e todas essas coisas, mas fácil ele não é não. É muita estória junta e misturada o tempo todo sem parar, tem uma hora que a idéias começam a dar pirueta multidimensional isvleichan. Por exemplo, isso que acaba de acontecer, escrever isvleichan. Que diabos é isvleichan, alguém pode me dizer? Mas aqui é assim, você pensa isvleichan, escreve isvleichan e se marcar amanhã surpreende alguém dizendo "eu achei muito isvleichan tal coisa". E o pior é que é bem possível que a pessoa responda pra você numa boa, afinal, são quinze línguas... E não pense você que a estória se reduz a uma questão lingüística. O grande problema - e também a maravilha - é que São Gabriel é habitado por objetos e seres que simplesmente não podem ser descritos pelo que conhecemos por língua portuguesa, as vidas e as coisas desse lugar simplesmente não obedecem ao velho Aurélio. É mesmo necessária uma outra língua. Ou quinze.


- Deixa eu explicar esse negócio de quinze línguas. Na verdade, umas são muito parecidas entre si e outras são faladas por poucas pessoas, então acaba que algumas são as "principais": tem a língua dos Tukano que dominaram vários povos do Rio Tiquié e impuseram sua língua (os tukano são a "elite" entre os povos indígenas daqui); tem o tronco lingüístico dos Maku (quatro ou cinco povos que se espalham pelos interiores e não nas beiras dos rio e que são o mais fudido no mundo indígena, tradicionalmente são escravos dos tukanos); os Baniwa do rio Içana, muito conhecidos por aqui pela conversão ao protestantismo, crente, em geral, é baniwa. Tem também a língua ianomâmi, que é o povo mais isolado de todos, tanto geograficamente como historicamente. Tem o nheengatú, imposto nos tempos passados pelos jesuítas e hoje predominante no rio Xié onde habitam os Baré, a etnia mais acaboclada da região toda. Pelo que eu entendi, bem por cima é mais ou menos isso. E tem o português e o espanhol (colombiano e venezuelano). Então, me corrigindo, não são quinze línguas que você ouve no dia a dia aqui. Fora as exceções, são só sete espalhadas em seis troncos lingüísticos. Super tranqüilo.


- Daí que como eu, fora o português, somente arranho de leve um portunholzinho bem safado, para mim as línguas indígenas soam todas como uma espécie de japonês diferentinho. Um japonês com sotaque. E não digo japonês como imagem de língua distante não, é que parece japonês mesmo. Tem até uma história aqui de que os indígenas são aparentados com os asiáticos. Já tinha ouvido falar disso antes e aqui eles também falam isso, ainda não perguntei muito pra saber com mais detalhes, sei que tem isso. E parece mesmo, o corpo, o cabelo e, se forçar um pouquinho a barra dá até para achar modo de vida indígena bem aparentado com o zen. Isso dava um bom motivo pra ficar na rede matutano, o zen e os índios da Amazônia. Tem tudo a ver mesmo... Mas enfim, daí a língua também é parecida, não as palavras, mas a cadência. Na sonoridade tem um monte de som anasalado que eu não consigo pronunciar. É um erre fanho dito com o nariz, difícil demais. E tem também um som constante de nh que tem que sair mais ou menos de detrás da língua, do ladinho assim. Quando você tenta falar, parece que tua língua tá amarrada. E é claro que esse sons da língua mãe deles são diretamente transportados para língua do branco. Eles enfiam esses sons no português que fica meio pra dentro e cheio de ênfase em algumas sílabas que aumentam de tamanho e de volume. Ao mesmo tempo, retiram as vogais solitárias, afinam a voz conforme vai chegando o fim da frase e desencanam de gênero certo (um galinha, um internet). E também adoram o termo "é assim", tudo que explicam dizem no fim, "é assim" ou então "lá é assim". Essa frase ocupa o lugar das vogais que eles engoliram ao longo da frase, é pra deixar o conjunto mais redondo. É que nem o "tá ligado?" do paulista (esquisito) ou o "sô" do mineiro (muito legal). É assim.
Nessa estória de línguas, na cidade o degradê vai de quem não fala um pingo de português até o meu amigo tuyuka que escreveu dois mestrados ao mesmo tempo. A maioria da cidade, que é de jovens e adolescentes já nascidos aqui (60%) é fluente em português e mal fala outra língua, é mais o sotaque que permanece no meio das gírias que eles aprendem vendo Malhação. É interessante que aqui em São Gabriel você testemunha o nascimento de um sotaque. Vai embora a língua de origem familiar – o que é uma tristeza – mas fica a música, o jeito de entoar a língua. É igual aqueles moleque da Mooca que não fala um pingo de italiano. Os filhos dessa molecada daqui talvez já sejam assim, mal conheçam o idioma dos bisavós. Tomara que não, mas se for isso, com certeza fica o sotaque. Outro dia ouvindo música em iorubá cantada em terreiro de candomblé e fiquei impressionado como a cadência parece a fala cotidiana do brasileiro. Nosso português é cheio de outras línguas, toda sotaqueada. Mas daí que aqui, ainda tem o sotaque do baniwa falando português, do ianomâmi falando Baré, do Desana falando espanhol e etecéteras do biritojúceras. E, tudo isso apimentada com o atropelo cheio de ditados do falar cearense. Ou seja, a linguagem cotidiana aqui em São Gabriel (leia daqui até o fim como se tivesse fugindo do sol quente) é feita um cabaré de cego dentro de um balaio de gato, é uma putaria palavratória, é um tal de uma língua se bolinano na outra, tudo entrado em tudo e saindo do outro lado todo melecado e diferente, uma esculhambação comunicativa de deixar qualquer um falando isvleichan e achar que é isso mesmo. Língua trepando com língua e fazendo filho que o L é a cara do pai mas as interjeições são a mãe todinha. Aqui cada frase vem de um rio diferente, a mesma frase vai até a Colômbia e volta antes virar só o olhar, aliás até os olhares aqui são em outro idioma, até a língua universal da alma aqui tem o Rio Negro correndo nela, quieto e espelhado, hora uma revolta, hora uma ternura. E tudo isso acompanhado de um monte de gestos e aquele outro negócio que eu esqueci o nome, tipo toc toc toc, chuáááá - onomatopéia a Marília falou aqui do meu lado, acho que é isso mesmo, sempre muitas onomatopéias e gestos e rugas e onças e canoa a motor Honda, e aí tem o outro mundo que se aproveita disso tudo e pula pra dentro das palavra e dos silêncio e das pessoa e da vida de todo dia que é sempre muita coisa misturada junto até que você entra no rio. xibé É assim, aqui é assim.
Esse lugar não existe. Só saio daqui quando aprender a falar isso em pelo menos cinco línguas.


- Queria muito entender por que essa palavra isvleichan apareceu no meio do texto. Tô no meio da Amazônia, água, céu e vinte duas etnias indígenas, e me vêm na cabeça uma palavra que parece saída de uma conversa entre dois surfistas estadunidenses. Os dois sentados na areia olhando o mar, um vira para o outro e fala "The waves isvleichan brother!". Acho que é de ficar vendo Friends e Seinfield na TV. O nheco nheco catchup dos besta lá vai entrando que nem mantra na minha cabeça e daí aparece assim como essa palavra. Chega dessa lavagem cerebral! Daqui para frente, Friends e Seinfield só com volume bem baixinho.


- Daí como se não bastasse esse monte de línguas que tem aqui, minha amiga chega em casa outro dia falando comigo na língua do P. Não demorou muito e descobrimos que a minha língua do P é diferente da dela. E que a língua do P, pode ser a língua do L, do V, do T. E que você pode muito bem criar uma língua do P T L ou então do D F P e assim por diante. E que todas essas são adaptáveis a todas às línguas, não só ao português. E que um dias todos aqui em São Gabriel poderiam resolver falar sua língua adaptada a uma língua que quiser inventar, Desana na língua do P, enhegatú na língua do F R, tuyuka na língua do V e assim vai. Tudo isso com sotaque, é claro.
Depois desse papo, passei a reconsiderar os ansiolíticos.


- E na época da faculdade, aquele monte de aula inútil e mal dada, pra passar o tempo eu ficava inventando palíndromo, palavras ou frases que, se lidas de trás pra frente são iguais. Ovo e Mussum, por exemplo. Daí, só pra constar aqui, já que o papo é palavra, teve uma naquela época lá que eu achei mais legalzinha. Imagina aí, dois irmão, gêmeos idênticos, um do lado do outro e com a mesma roupa, de frente pra um espelho.

SAI SÓSIAS! SÓ NÓS SOMOS SÓ NÓS! SAI SÓSIAS!


- Daí o cearense sai de casa aqui em São Gabriel e passa na casa do amigo:
-Ei ma, bó pu ri!
Tradução: olá amigo (macho), vamos para o rio!


- Angústia filosófica de mineiro:
- Oncotô? Comcosô? Poncovô?


- E tem aquela conhecida dos dois surfistas na hora de fazer café:
- Pó pô pó?
- Pó pó, pó. Valeu. Isvleichan!
- Isvleichan!


- Intão, não foi por acaso que eu falei aí pra cima de coisas imaginadas e palavras inexistentes. Creio que andei cometendo um erro conceitual. Clerópto não é uma fictícia nomenclatura científica para borboletas. Aquele dia que escrevi isso cometi um ato afobado, ainda estava meio chegando aqui e não entendi direito o que estava acontecendo. Agora, passado um tempinho, já entendo melhor o que aconteceu. Era o pajé jabuti que já começava a me assoprar dicas metafísicas. Ao imediatamente fechar o clerópto em um significado que me era útil ali naquele momento, além de cometer um ato egoísta, interrompi um processo da canalização telúrica que estava em curso. Canalização telúrica é um nome abaitolado para uma vivência muito comum aqui em São Gabriel que é, digamos, um "papo" com seu pajé invisível. Pajé invisível por aqui é igual a livro da bíblia em igreja de crente, todo mundo tem o seu. O meu, como já tive oportunidade de relatar, é um sósia de meu vivíssimo e ativo tio Joãozito, reencarnação de um monge tibetano. Daí que eu tô aprendendo a "papear" com meu pajé jabuti e tenho tido grandes avanços a partir da revelação do clerópto. Não vou ficar aqui me apegando a detalhes do modo como essas revelações tem acontecido, até porque tem coisa que não é pra se ficar contando assim. Prefiro ir direto ao ponto. Foi-me revelado que clerópto é o nome de uma espécie animal só existente aqui em São Gabriel e, mesmo assim, em alguns lugares apenas. E que, ao contrário do que afirmei anteriormente, cléropto é o cruzamento de borboleta (clér) com pterodátilo (ópto). O resultado é, para dizer o mínimo do mínimo, surpreendente. Mesmo o pouco que eu pude constatar até agora já é muito impressionante. Até agora, eu ainda não tive um contato visual direto e durante um tempo suficiente par descreve-lo em detalhes. Mas só pelo que eu já vi, descrevê-lo é tarefa árdua. Já vi um passando, mas foi rápido, hora de lusco-fusco e entre umas árvores. Mó energia. Deu pra distinguir algumas cores avermelhadas e uma forma meio arredondada. Seu canto ainda permanece um mistério, se é que ele canta. Como será o seu canto? Estou empolgado com essa estória tento imaginar como será ela batendo suas asas meio borboleta meio pterodátilo e como será seu vôo e confesso que não consigo criar uma imagem muito nítida. As revelações tem um ritmo muito próprio daqui e acontecem aos poucos. Até agora sei que eles existem, por onde passam e já consegui, como disse, ver um passando meio longe, e só. Mas sei que o pajé jabuti daqui a pouco virá com boas surpresas. Se bem que nossos dois últimos papos me deixaram meio confusos, mais atrapalharam que outra coisa. O lugar e o como não interessam, mas a penúltima mensagem dizia "clerópto é exato. Média aritmética. Um ovo". Num entendi lhufas. Pensei um pouco, lembrei da Vilma preparando um omelete gigante para o Fred, da Cida uma professora de matemática chata pacaralho que eu tive e acho que só. Muito enigmático, preferi esperar. Depois de uns dias, a última mensagem até agora. "borboleta mais pterodátilo, dividido por dois é igual a galinha." Como assim?!?! Essa foi foda né? Totalmente absurdo, alguma coisa deve estar errada, não é possível, vai ver que rolou uma linha cruzada com algum benzedor caipira, sei lá, prefiro nem entender. Galinha não tem nada a ver com borboleta. Com um pterodátilo então... "Igual a galinha", onde já se viu, só faltava essa agora. Esse Joãozito tem cada uma...


Daspalavra


*

- Daí que aqui na casa tem um Luis Fernando Veríssimo que eu dou uma lida de vez em quando. Pois bem, esses dias estava até escrevendo alguma coisa no computador, quando a Marília me chamou para comer uns pãezinhos de queijo com catupiry que ela havia assado. Sentamos cada um de um lado da mesa, o Paulo, namorado dela, na cabeceira, e ficamos conversando e comendo. Uma hora o Paulo levantou e foi lavar uma loucinhas acumuladas na pia que fica logo atrás da mesa. Deu dois minutos a Marília fala:
- Sabe uma coisa que eu reparei? Que você sempre deixa um pãozinho de queijo pela metade.
Daí eu:
- Isso tá parecendo cena inicial de crônica do Veríssimo, duas pessoas, um pão de queijo, um comentário de uma delas. Dá até vontade de escrever sobre isso. De como isso é parecido com uma crônica do Veríssimo
- Não Bruno, é sério, é uma espécie de obsessão sua.
- Eu sei que é sério, e é sério também que dá vontade de escrever, eu colocaria por exemplo essa parte de você falando que é sério.
- Não, mas aí não dá pra falar direito, você nunca reparou que sempre deixa uma metadezinha?
- Sei lá, acho que já reparei, mas se a gente entrar nesse papo vai ficar igualzinho a uma crônica do Veríssimo, sabe né, aquele livro que tem aí.
- Hum hum (acede de leve com a cabeça) Faz tempo que você faz isso?
- Tá bom, tá bom, você falando eu lembrei da minha mãe falando pra eu fechar as gavetas. Eu sou ruim em fechar as gavetas da minha vida. E talvez em comer os pãezinhos por completo. E acho que talvez uma coisa tenha a ver com a outra.
- Você não está falando muito sério, só está pensando no que vai escrever.
- É que tem que ver como isso vai terminar para eu escrever depois.
- Mas assim não dá pra conversar, eu acho que isso é sério mesmo, você não está prestando atenção no principal, só fica falando que vai escrever.
Nessa hora, o Paulo, que ainda está lavando a louça – suas costas estão bem na minha frente - retoma o papo anterior:
- Vocês dois com esse negócio de socialismo...
Daí volta o papo de antes, ter grana, individualismo, capital e essas coisas todas. Depois a Má sai da cozinha, O Paulo vai pra rede e eu volto pro computador e esqueço do mundo. Daí um pouquinho a Má me cutuca:
- Ó. (e me mostra a forma com um pãozinho sem um pedaço).
- Que qui tem?
- O fim para o que você vai escrever, bota que no fim fui eu que deixei só a metade.
- Será que fica bom?
- Sei lá, tava sem fim.
- Mas esse pedaço não é metade, é bem mais. Não é a mesma coisa, mas talvez isso que a gente conversou agora seja um bom final, você tentando dar um final.
- é...
- Mas nunca vai ser um final que nem os do Veríssimo, a verdade é que a gente nunca vai conseguir...
- Porque se é pra ser socialista, vamos ser socialista então, tem que comprar catupiry pra todo mundo!
Daí os dois voltaram pra discutir com o Paulo, o bicho tava a fim de discutir nesse dia, não agüentava mais ser acusado de capitalista. Vou começar a reparar se sempre deixo mesmo a metade de um pãozinho. Obsessivo o nariz dela, um mundo com um pãozinho pela metade é um mundo favorecido, um mundo que carrega em seu seio uma prova que a incompletude pode ser feliz... Meio pãozinho descansando sobre a mesa... que imagem...


*


Acho que é isso então.
Anhethurren, saionará oxenti nóis tudo. Saravá os cabôco!! Daspalavra.
Depois eu volto aí.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Buenas! Estou em dias filosóficos. Numérico-filosóficos. Tô querendo retornar ao dois. São Gabriel é um balaio de gato excitado, tudo ao mesmo tempo agora uma coisa de cada vez. Tá doido, assim ninguém guenta, é necessário arrumar as coisas. Pelo menos um pouquinho. Chega de um zilhão manifestado de mil maneiras no mesmo instante. Eu quero de volta a paz do dois.


- O dois é, de longe, o número mais adequado para a filosofia. O um é aquela coisa, é pouco. Ou então é tudo, definitivo demais, tudo incluído e resolvido. Não há motivo pra peleja. O um é totalitário, impositivo. O dois não. Ele é a base, a abstração que alicerça e possibilita todas as outras. O dois é a divisão inicial, é o começo essencial que ajuda a segurar a confusão que surge do três em diante. Isso é assunto longo, já perdi muito tempo pestanejando nisso, essa estória de número e filosofia mas, para resumir e não ficar com muita enrolação sobre inexistências, deixa eu ser direto. O dois é o melhor porque é muito mais simples. Pode chegar e dizer; “tudo tem dois lados”. Todo mundo entende de cara, acho que até intelectual entende, com uma certa dificuldade, e inúmeros “veja bem” mas entende. Diz “tudo tem três lados” ou então quatro pra ver. Está armada a celeuma (sempre quis usar essa palavra), benvinda complexidade sem fim. E, em boa parte da vezes, inútil. O dois dispensa grandes divagações. Dos Flinstones aos Jetsons, rica, pobre, amarelo, índio, aflita, pasmódico, doutor, montanhoso. Até assombração entende. Aliás, o que seria das assombrações sem o dois, sem o mundo de cá e o mundo de lá? O dois é pra todo mundo.


- Daí que até um mês e pouco, minha vida ia muito bem obrigado, ia seguindo seu caminhozinho honesto com a ajuda do Dois. Nasci, cresci e deitei pra descansar um pouquinho, sempre guiado por Dois. Claro, sempre tem um tropeço aqui outro ali, a certeza dá uma abaladinha, novas filosofias de boteco se fazem necessárias, se enfia um yin/yang aqui, uma guruzinha indiana acolá, enfim, vai se levando as coisas como o Dois quer e, aos poucos, tudo volta a sua dualidade governável. Só que daí eu cheguei aqui. São Gabriel da Cachoeira é de fazer o Kant despachar um ebó pro saci. É aquilo que eu tenho falado muito desde que cheguei nessa terra, por aqui é só abrir os olhos e bruvisleutronmaliqüidrun, o real se manifesta em um sem-número de ângulos e cores e tempos e formas e eu fico sem saber o que fazer, em estado de lisergia ininterrupta, em estado de “meu, mó energia” o tempo todo. Tem uma hora que começa a dar curto, fica tudo muito espirilático demais. Ainda bem que eu tive aquele sonho. Daí o dois voltou.

- Foi numa noite igual às outras que eu tenho passado aqui, rede armada na sala da minha amiga, a mata menos habitada do planeta (faz de conta que eu tô na Terra) zunindo lá fora e um filminho a cabo bem descartável só pra manter o constante paradoxo que é o mundo aqui. Peguei no sono. Daí um pouco ele chegou, envolto em uma misteriosa fumaça, ele mesmo na verdade era meio uma fumaça, um jogo de formas flutuantes hora vacilantes hora mais nítidas, sabe quando a fumaça do cigarro fica á contra luz, fumaça de incenso? Intão, daquele jeito lá só que mais encorpado de mistério, como se o cigarro tivesse em algum além invisível e só chegasse no sonho a fumaça dele, aquelas curvas meio desmanchadas só que desenhadinhas, qui nem eu já falei, meio dançando vagarosas ao som de flautas longínquas. Daí que nessa eu assustei um pouco. Num é que a forma etérea era o meu tio Joãozito! (que está vivinho da silva quero esclarecer). Pra ser bem exato, era meio o Joãozito, meio um jabuti (as estórias do meu tio Joãozito com jabutis são famosas em todo o Ceará) e, às vezes, dependendo do ângulo da fumaça, virava um desses pajés narigudos e de cara encurvada. Digo que me assustei porque é impossível não se assustar com um negócio desses acontecendo, acho que não é nem o caso de ficar explicando, e digo um pouco porque aqui em São Gabriel você aprende a economizar espanto, você se deslumbra mas num exagera porque senão falta energia pra próxima inquietação hipnótica que inevitavelmente ocorrerá de novo e em breve. Tem hora que eu vejo umas estórias aqui mas vou deixar pra perceber só mais tarde. Às vezes a noite tô me assustando com um negócio que eu vi na hora do almoço, às vezes até de outro dia. Aqui é tão maluco que é assim, o inesperado tem que entrar na fila e esperar o seu número ser chamado.
Mas deixa eu voltar pro João, grande jabuti de fumaça, pajé invisível e narigudo. Daí que eu fiquei lá na rede sem me mexer muito, vendo sem abrir os olhos o Joãozito se aproximar de mim, mais especificamente do meu ouvido direito e assoprar uma palavra. Assoprou e foi embora, se sumiu em suas próprias formas indo embora, se esvanecendo. Mas na hora exata que falou era ele certinho, até a verruga na cara tinha. E era também o jabuti já velho (acho que nem existe jabuti novo) e o tal do pajé, tudo meio misturado mas cada um na sua. Soprou no meu ouvido aquela palavra e foi embora e voltou lá para o antes do sonho, lá onde fica o incenso. Daí a palavra entrou pelo meu ouvido mas não fez som nenhum. Primeiro ela entrou e foi em outro lugar pra depois eu ouvir. Era fundo e vazio. Um oco de algum lugar lá no meu fim, lá na origem desse sonho, talvez nossa origem. Deitado na rede, na fumaça do pajé, onde minha origem toca o fim. O nosso. O antes. Foi de lá que veio a palavra.
Xibé.

*

- Xibé é o contraponto ao sempre instável, um halo vazio que envolve toda cor, é o silêncio perene ao fundo das múltiplas vozes e línguas. Xibé é a paz invencível que anda de mãos dadas com a esquizofrenia varanásica da vida em São Gabriel da Cachoeira. Xibé é a sombra e o silêncio. É quando se entra no rio aqui em São Gabriel, é quando se mergulha de olhos fechado no rio e tudo milagrosamente se acalma e tudo se apruma e adormece. E daí então você vê. Xibé te ajuda a ver. O antes. O mistério do rio aqui em São Gabriel não pode ser desvendado, mas você pode beber dele, guardá-lo junto com você. O antes. Uma das formas é conhecendo xibé. E daí então você vê.


-Xibé é o nome do alimento base do indígena que vive da roça. Água com farinha. E só. Mais simples impossível. Insosso e ralo. Xibé. No dentro do rio, no interior da cobra mítica, no oco da cuia, Xibé. Água e mandioca. Há milhares de anos os indígenas daqui se alimentam basicamente de xibé. Acho que não preciso dizer mais nada.

**

Xibé te ajuda a ver.

- Conversei com um Desana (esqueci o nome) que mora a mais de vinte dias de barco aqui de São Gabriel. Sua comunidade tem cerca de vinte pessoas. Nunca tinha vindo até a cidade. Ele falava pouco e sua voz era baixa. Como não falava muito, quase não conversamos, mas fiquei bastante sentado do lado dele, em silêncio. Era muito bom ficar ao lado dele, o silêncio dele era o silêncio da aldeia que fica há vinte dias de barco de São Gabriel e que só tem cerca de vinte pessoas. O silêncio dele tinha os barulhos dessa aldeia. Daí eu fiquei do lado dele para conhecer um pouco de sua aldeia. Daí eu entendi um pouco melhor o que os indígenas contam da Cobra Grande. No silêncio dele eu entendi. Uma hora eu perguntei o que ele estava achando daqui. Mostrou o braço e algumas pintinhas pretas bem pequenininhas. “Aqui são outros bichos que picam a gente”, e não falou mais nada. Ele falava pouco mesmo. Nos outros dois dias que encontrei com ele também foi assim, sentei perto dele mas quase não conversamos.

- Levaram um pataxó para a França na época do “Ano do Brasil” lá. Passou quinze dias andando por Paris. Daí perguntaram pra ele o que ele tinha achado da viagem. Ele respondeu que não estava acostumado a ficar tanto tempo sem pisar na terra.

- Daí eu conversando com um pataxó ele me contou que antes do mundo não tinha nada só água. Daí a água baixou e da terra nasceram três plantas. A mandioca, a abóbora e o pataxó.

- Outro dia tava no rio e sem querer entrei com um fósforo no bolso. Quando percebi tirei e joguei ele de lado, encima das pedras. Estava com minha amiga e ela comeu um pedação de mamão e deixou a casca de lado, encima das pedras. Daí estávamos falando de agrofloresta e eu estava com um bagaço de laranja na mão. Veio um menininho de cueca branca correndo e parou perto da gente. Ele pegou a caixa de fósforo e a casca de mamão e foi correndo lá pra frente. Depois os palitos viraram gente e a casca do mamão um barco. Eu joguei o bagaço de laranja na cabeça da Marília.

- No por do sol tem muita gente lavando roupa. As crianças menorzinhas ficam do lado da mãe brincando na água. Quando é por do sol tudo se enche de cores inexplicáveis. Tudo fica mais imenso ainda. A menininha brincava do lado da mãe, ela ficava batendo a mão no rio e dando risada. Daí uma hora a mãe fala pra meninininha com o sotaque carregado dos indígenas daqui. “Água, é água”. Depois voltou a lavar roupa. E tudo continuou imenso.

- Quando morre um ianomâmi, o corpo é cremado e enterrado durante um ano. Depois eles desenterram e misturam as cinzas em um tacho com mingau de banana verde. Durante um rito feito em homenagem aos mortos, os parentes daquele que foi comem o mingau. O parente então volta para perto.

Xibé.



segunda-feira, 11 de maio de 2009

Buenas! Muito bem camaradas, as coisas aqui por Barcelos continuam caminhando amazonicamente, tipo tartaruga desapressada, ou bicho de casco como eles dizem aqui. A cada dia estou mais adaptado à vida peixe com farinha e ao clima calor com frutas. E canal a cabo. E tem a rede, é claro. A rede, talvez tenha chegado a hora de embalar algumas bobagens sobre ela.


- Alguém se lembra aí de um filme chamado “A Mosca”, onde um fulano entra numa máquina com uma mosca e se funde com ela, daí começa a virar uma mosca gigante, um homem-mosca, um troço assim? Lembram? Então, acho que tá rolando isso entre mim e minha rede. Estou virando uma rede, um homem-rede, um troço assim. E como estou na Amazônia - que apesar de ser uma ficção não tem aquela máquina do filme e nem a necessidade de realizar tudo em apenas dois minutos - o processo é muito mais lento e natural. Aqui, na infinita intimidade entre mim e minha rede, o que rola é uma transmutação gradual e desobjetiva, uma transformação que segue o tempo leso da água, que caminha segundo a mitopoética natural de incorporação que irrompe da relação entre o ser humano e o mundo que o rodeia, nesse caso, uma rede puída e meio fedentinha.



-Uma das coisas que tem me chamado a atenção nessa história (faz tempo que tá rolando já, eu que não quis comentar nada) é que tenho feito o caminho inverso do grande símbolo universal da transformação, a bela borboleta que sai do casulo. Não que eu seja uma bela borboleta, longe disso, o negócio é com o casulo. Eu tenho me tornado o casulo. Dá até pra fazer uma correlação entre a liberdade da borboleta (qual o nome científico da borboleta, eu ia me sentir mais à vontade usando ele. Faz de conta que é cleróptos). Vou começar de novo: Dá até para fazer uma correlação entre a liberdade dos cleróptos e minha vida aqui na Amazônia, ambas não tem amarras, podem parar onde bem entender, “voar” para onde quiserem, essas coisas. Daí que eu tô fazendo o que o Manoel de Barros chama de “descomeçar”. Meu processo de transformação tá indo do clerópto (ficou legal né, clerópto, lê em voz alta pra ver, soa bem, se der, finge que está batendo asas enquanto fala, é ótimo, você se sente uma borboleta – ou um clerópto -mesmo, se não der pra fazer agora tenta depois, pelado (a) se rolar, de repente na hora do banho. Você vai se surpreender, é libertador) para o casulo. Ou seja, um descomeço. Aos poucos, estou me transformando na minha rede. Estou descomeçando, transmutando para trás, estou descaminhando para o refúgio inicial, para meu casulo originário, estou virando uma rede velha. Cada vez menos saio por aí cleróptando pra lá e pra cá, desperdiçando energia com movimentos desnecessários tipo se levantar, usar as pernas, essas coisas. Fica cada vez mais claro pra mim que isso não faz parte da minha essência de homem-rede, cada vez percebo com mais nitidez que nasci para ficar pendurado em uma varanda, em uma cozinha arejada ou entre duas árvores no meio da mata, testemunhando a fotossíntese. Nasci para passar cinco dias me apertando com duzentas irmãs, penduradas em um barco Belém-Manaus, oferecendo paz e descanso pelo puro prazer de ser eu mesma. Isso sim é que é vida. Se antes me vangloriava de passar muito tempo na rede, se antes eu tinha toda uma ética da rede, do passar o dia na rede, da rede como o lugar onde o ser alcança sua plenitude, onde o homem atinge o topo do caminho evolutivo e outros tantos filosofemas, agora sinto que essa fase foi superada. Já não há mais separação nem distância. Não há mais um algo a ser admirado. Aos poucos estou me fundindo ao meu objeto de adoração, me tornado um com ele, somos a mesma pele, as mesmas dobras, o mesmo objeto-síntese do repouso universal. Já não estou em uma rede, agora sou uma rede, sou a minha rede, a minha doce e despreocupada rede. Fico até emocionado de falar sobre isso. De um clerópto solto mas distante de seu dom para a unidade essencial com a mãe preguiça e seu colo ancestral.. Tá sendo um puta processo bonito...


-Daí, que esses dias notei que abriu um furinho na minha rede. Comecei a ficar preocupado, começa assim, um furinho, daqui a pouco ó, um puta rasgo e baubau rede. Deus me livre ficar sem rede. Olha como trem é sério, só de pensar em ficar sem rede, na próxima frase eu já boto Deus no meio do assunto. Fico preocupado, não tem jeito. Já ela, diferente de mim, não mostrou um pingo de preocupação em estar com um furinho e, porisso, mais próxima do fim. Continua a mesma, plena, senhora de si e do mundo, completamente absorta em sua condição de objeto perfeito só que agora com um furinho. Simples assim. Uma verdadeira lição. Vocês vão concordar comigo, uma rede preocupada é uma contradição de termos, uma rede nunca se preocupa, senão não é rede. E é porisso que nós, meros aprendizes na trabalhosa arte da preguiça essencial, vamos até ela. É para tentar adquirir essa sabedoria, essa despreocupação independente de tudo, de qualquer coisa ao seu redor. Nos dirigimos a ela para tentar reter um pouco da incomensurável paz que só a completa despreocupação oferecida por uma rede pode trazer. E vai aqui uma observação paralela. Budistas e meditabundos em geral que me perdoem, mas despreocupação completa e total, aquelas que eles esperam alcançar sentados no chão duro sem nadinha pra se escorar, só é possível mesmo na rede. Ou então, no mínimo, na rede é mais rápido e bem menos trabalhoso. Se tivesse rede no palácio do Gautama ele não tinha saído para se iluminar debaixo de uma árvore. Talvez de duas, mas aí ele ia pendurar uma rede. Para ser verdadeiramente despreocupado, tem que ter rede no meio. Aliás, aproveitando o ensejo, o verdadeiro caminho do meio é o caminho da rede. É ela que devia figurar nesses livros que se debruçam sobre a natureza da iluminação e do sentido último da vida. Nada de mandalas, cobrinhas comendo o próprio rabo e infinitos em espiral, o símbolo definitivo sobre o Tudo e o Nada é a rede. Nenhum ente é mais equilibrado e completo em si mesmo que uma rede bem pendurada. Mas tem uma coisa, se você quiser completar o cenário, se quiser realmente chegar no topo do topo da perfeição sossegativa, no ápice extremo da não-ação, daí é só colocar na rede o meu celebre tio-avô Joãozito (o melhor carteiro que o Vale do Jaguaribe já conheceu) e embaixo dela o seu cearencíssimo penico. Só de lembrar já sinto ondas de silêncio interior brotarem das profundezas do meu ser. Nem aquelas estátuas de pedra lá do Oriente são capazes de emanar tanta paz celestial. Meu tio Joãozito balangando em uma rede com seu imóvel penico branco por debaixo. , ali começa e termina o universo. Seres atormentados por milhares e milhares de encarnações na roda do Sansara, encontrariam o fim de suas milenares inquietações se pudessem conhecer o Joãozito, sua rede e seu penico. Deixa eu explicar melhor, é que esse meu tio é uma dessas reencarnações dos lamas ancestrais lá do Tibete, desses superpoderosos que a gente aqui do Ocidente nem imagina o quanto, mas como nessa última vida ele resoveu baixar no Ceará e conheceu a rede e o penico, acabou-se o motivo de sair levantando assim à toa, quem dirá pregando a paz por aí. Aliás, se a gente parar para analisar direitinho, sair por aí pregando a paz é sinal que ainda não se encerrou o ciclo, que no fundo ainda restam preocupações, nobres, nobilíssimas é verdade, mas ainda sim, preocupações. A chama da angústia ainda não se extinguiu. Eles, os budistas, vão chamar isso de compaixão. Pode até ser comovente e generoso num tanto inimaginável para um mero apegado a matéria como eu, mas a verdade é que ainda assim é uma preocupação. Iluminado mesmo, para mim, é o Joãozito, que alcançou o descomeço das eras e a absoluta despreocupação usando apenas uma rede e um penico. O tio Joãozito é o máximo.


- Pra vocês terem uma idéia, eu considero esse negócio de rede tão sério que, nesse ponto, até dos mineiros eu desconfio. Como é que pode aquela tranqüilidade toda se eles não costumam usar rede? Num sei não, ali tem coisa, não é possível. Eles devem ter redes escondidas em algum lugar, atrás da horta berando os pé de couve, ou lá pus meio do milharal, sei lá. Eu tenho pra mim que quando num tem ninguém olhando eles saem daquelas cócoras deles lá e vão se refugiar em alguma rede e pitá um paioso. Só pode ser, não tem outra explicação. Aliás, não vai ser hoje, mas ainda será escrito e um dia desses, um tratado sobre a união cósmica da rede com o cigarro de palha. Se a rede encerra a unidade do real, rede e cigarro de palha formam a dualidade perfeita, o princípio universal da complementariedade que habita em todas as coisas. Ma não são contrários, notem bem. O contrário da rede é a bicicleta. E dá-lhe mais um escrito. Mas, por enquanto, continuemos com a estória da despreocupação. Mesmo uma rede no hospital de uma zona de guerra ou em um campo de refugiados de um acidente escabroso desses aí, é uma rede despreocupada. Num tem jeito. Pode até ser uma rede mais austera, mais calejada e todas essas coisas para onde a vida extrema nos conduz, mas preocupada não, nunca. Daí que por isso tudo é que minha rede não está nem aí com o furinho que apareceu nela, continua lá, despreocupada como sempre. Mas eu estou preocupado, não posso negar. Pelo menos ainda. Pelo menos até a transmutação total, até a fusão completa entre mim e minha rede cinza de algodão. Tô chegano Nirvana, tô chegano...


Nossa gente, essa introduçãozinha já extrapolou seu limite. É que esse tema me fascina, daí eu me empolgo. Seria capaz de escrever centenas de páginas só de reflexões inspiradas na rede. Mas fica para outra feita, por agora é só isso, tô aqui em Barcelos me fundindo com uma rede e imaginando São Gabriel. Vamos aos fatos inventados.

*

Daí que um dia eu tava em São Paulo e resolvi escrever um poema sobre mim mesmo. Botei lá “pedraflor” e fiquei um tempo encima dele. Depois eu descobri que minha palavra inventada tinha sido chupinzada de um Leminsky que eu tinha lido, mas daí a imagem já tinha se desdobrado. Então dei thau pra originalidade e fiquei só com a auto- análise , entendi que sou meio pedraflor, cheio de extremos juntos. Tô dizendo isso por conta da vida aqui em Varanasi. Aqui na Ìndia a realidade é meio pedraflor, os extremos andam juntos o tempo todo. È mais até que pedraflor, é algo como peflodar ou flepador, é muito junto muito, junto pacaraio, é a mesma coisa, pra melhor dizer. Daí que antes dessas estórias da rede (o Joãozito é o máximo!), eu escrevi umas coisas durante essa semana que não tem nada a ver com o clima menino sensível no paraíso encantado dos índios. É o lado daqui de São Gabriel cheio de mazelas e cenas dantescas, uma realidade revoltante que dá vontade de matar chorar sumir. Daí que juntando o que tá encima com o que vocês vão ler aí embaixo, dá esse clima meio pedraflor. Aí resolvi botar essas linhas aqui no meio pra lembrar que, na verdade, é fradlepor. É tudo uma coisa só, as realidades se interpenetram e se afastam num movimento constante que confunde e deslumbra, mistura pterodátilos com meninas prostitutas, Shiva com macaxeira e invisível com materialismo dialético. São Gabriel da Cachoeira é inacreditável de tão existente, segue o seu veneno:


- Uma menina de 16 anos oferecendo a virgindade da irmãzinha de doze por duzentos reais aos taxistas e comerciantes locais. Muitos adolescentes cometendo pequenos e não tão pequenos crimes pra conseguir grana e comprar pasta base de cocaína. Inúmeros casos de violência contra mulher, alcoolismo pesadaço e abuso sexual dentro de casa. Indígenas que vem de longe buscar o Bolsa-família da comunidade toda e torram a grana na pingaiada de São Gabriel. Não sobra dinheiro nem pra voltar, quanto mais pra comprar comida. Fatos cotidianos que minha amiga relata para mim quase todo dia. Ela é psicóloga pela prefeitura e se divide em duas instituições diferentes. Sem tempo para se dedicar, acaba que não trabalha direito em nenhuma. Desde sempre está pedindo que contratem outros profissionais. Até hoje não foi atendida. Dizem que é por contenção de despesa. Dívidas feitas pela gestão passada...


- A noite de São Gabriel lembra o centro de São Paulo. E lembra mesmo, a ponto de eu me sentir como se estivesse em um daqueles boteco fulera debaixo do Minhocão. A noite aqui é muito mais Blade Runner que Manaus, Belém ou São Luis. Inclusive na aparência das ruas, na atmosfera de violência latente e nas meninas novinhas e super maquiadas que se oferecem em alguns pontos menos iluminados e estratégicos. Lembrem-se que estou em uma “cidadezinha” de vinte mil pessoas, boa parte indígena e que chegou a pouco tempo de suas comunidades de origem. Parece mentira, mas não é, são fenômenos reais, coisas do alto fluxo de capital e sua concentração na mão de poucos. Apesar de não ter turismo, acaba que São Gabriel tem uma coisas parecidas com essas vilinhas exploradas aí pelo Nordeste. No cartão postal, a estonteante duna do por-do-sol. Atrás da duna, Sodoma e Gomorra.

- O alcoolismo é um sério problema de saúde pública aqui de São Gabriel. Cenário comum daqui: um pequeno boteco improvisado em um barraco de madeira. Dentro dois ou três homens, um detrás de um pequeno balcão, os outros na frente. Sempre tem um a beira do nocaute, tortinho tortinho como a gente falava lá na Vila Sônia. Pequenos copos. Atrás do homem do balcão, vinte, trinta, quarenta (sei lá) garrafas da única coisa vendida ali, pinga 51. Tem vários desses barracos aqui. A cena impressiona, tirei até foto, a imagem é forte, posso garantir.


- Tem uns galpões construídos aqui que é onde os indígenas se “hospedam” quando vem da comunidade. Não passa de uma estrutura de alvenaria coberta com zinco, onde os indígenas armam suas redes. Não tem banheiro nem cozinha e o esquema da limpeza é beeem precário. Já a sede da maior ONG da cidade lembra um daqueles restaurantes chiques-exóticos do litoral Norte de São Paulo ou da Bahia: Vista privilegiada, arquitetura thop-thuras, todo feito em madeira trabalhada e palha regional no teto. Por dentro, redes, banquinhos artesanais e fotos suuuper bacanas dão uma atmosfera rústico-antropológica ao espaço. Predominam os tons pastéis. Ao lado, uns chalezinhos que oferecem conforto sem perder a simplicidade. O conjunto todo chama a atenção pelo bom gosto abaitolado e pelo desperdício de dinheiro com frescura. O Brasil é uma merda memo.

-A principal ONG de saúde da região é responsável pela assistência de boa parte das comunidades daqui. Só tem uma médica.

- De todos os grupos sociais que compõem os donos da grana em São Gabriel, os militares talvez sejam os que olham os indígenas com maior preconceito e filhadaputice racista. Os jovens da região se esforçam muito para entrar no exército. Além de um salário no fim do mês – coisa rara aqui, quase inexistente para indígenas – ser soldado dá status entre os jovens. Grana, prestígio e a pior ideologia que se possa imaginar, eis a fórmula da bomba. A grande maioria do exército aqui é composto por indígenas. Menos, é claro, nos cargos de comando.


- Os comerciantes graúdos da região não param de enriquecer. Desfilam pela cidade com picapes importadas e ouro de garimpo pendurado pelo corpo. Tem ligação com o tráfico internacional de coca e exercem influência decisiva nos rumos políticos daqui. Ah, e claro, são os principais clientes e articuladores da prostituição infantil na região.


- Conheci outro dia um cara que tinha passado dois anos escravizado pelo pessoal do tráfico. Não é raro isso por aqui, principalmente nesse mundão de comunidades que se estendem até a Colômbia. E é escravidão mesmo, com surra, cativeiro, fome e morte sua e da sua família sem precisar grandes motivos. A última que eu ouvi é que eles estão querendo matar todos os pajés da região. Assim abalam a coesão dos grupos indígenas e fica bem mais fácil aliciá-los. E ainda escapam dos castigos sobrenaturais. Diz que eles morrem de medo de feitiço.

Acho que já tá bom né. Desculpa o tamanho, ficou grande esse né. Dexa eu ir, depois eu volto. Saravá os cabôco. Até.

PS: Ah, e não esquece o lance do clerópto hein. É só bater asa e repetir: clerópto, clerópto. Pelado de preferência. Meu, mó energia.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Buenas! Intão, continuo aqui em Barcelos, inventando estórias sobre a cidade imaginária de nome São Gabriel da Cachoeira:



- Esses dias passei a tarde de conversa com o Esmeraldino, um figura de Maiá, a comunidade ianomâmi mais isolada da região. Como os ianomâmi são uma etnia que é conhecida aqui por seu jeito diferente - são bastante introspectivos e sensíveis, o que lhes confere um ar meio misterioso - essa comunidade de Maiá é sempre citada em uma atmosfera meio onírica, como um lugar onde se respira o ar dos ancestrais, onde sente-se de maneira muito presente a força dos “antigo” e do mundo espiritual dos índios. Daí que eu esbarrei com ele pela rua e começamos a papear, até que acabamos em casa onde tinha água, sombra e tapioca pra botar no açaí. Lá passamos quase o resto da tarde toda conversando, ele me falando da vida lá e eu contando de São Paulo, os dois impressionados. Até tentei procurar uma imagem no computador da minha amiga para mostrar para ele mas num achei. Me perguntou se São Paulo era maior que São Gabriel e o que tinha lá. Eu perguntei para ele se Maiá era um pouco parecido com São Gabriel e o que tinha lá. Enquanto isso tomamos açaí e fumamos trevo. Pra variar tava um puta dum calor e um sol de rachar a molera. Aqui é muito quente. Bebemos água. A gente tava na varanda. Eu falei que quero ir para Maiá conhecer o pessoal dele e a comunidade. Ele falou que se não tivesse família ia embora comigo pra São Paulo assim que eu voltasse. Ficou curioso de me ouvir falar e queria conhecer. Daí ele me contou um monte de estória, coisas da vida dele, de sua família e de suas comidas (ele me falou muito sobre comida). E me contou a estória da onça.


Deixa eu parar um pouco nesse momento e enfiar aqui uma digressão. Sabe que lá no Pará, andando com um caboclo no meio da mata, ele me falou de duas diferenças básicas entre o índio e o não índio quando estão no mato. A primeira é que o não-indígena abre trilha pra poder andar no mato, faz um trem meio reto e sem vegetação pra poder caminhar encima com segurança, enquanto o indígena anda sem abrir trilha nenhuma, tira uns matinho aqui e acolá, ranca um toquinho ou outro mais atrapalhoso e só. A outra diferença é que o não indígena costuma andar olhando para o chão, assim ele não sai da trilha nem tropeça ou pisa em alguma coisa que machuque, ou em algum bicho, essas coisas. O indígena anda olhando para cima, daí ele deduz o que está por baixo e também pode observar o que acontece no alto das árvores, ver caça, frutos e mel silvestre, por exemplo. Só olha pra baixo quando precisa, para ver rastro, merda de bicho, mato pisado, essas coisas. Daí que contar a estória do Esmeraldino me parece abrir uma trilha reta e só olhar para baixo (de bota zebu ainda por cima) onde outros vão descalço sem precisar tirar nada. Eu num tenho coragem não. É essa minha birra com a linguagem que a gente tá habituado, esse négócio tudo certinho, congelado parece. Dá impressão que eu tô com um lápis preto tentando desenhar a aurora boreal. Daí tira até o ânimo de contar as coisas. Eu sei que isso é papo intelectualóide e tal, mas pintassilgo, essa história tem me deixado atarantado viu, ô linguagenzinha sem sal, tem que tirar leite de pedra pra sair uma coisinha um pouco menos tosca. Tira a graça de tudo, credo, nunca vi.




Mas enfim, o cara contando é de uma presença, que mesmo falando um português todo quebrado (aliás, o jeito quebrado ajuda) você se transfere lá pro acontecimento dele, quando vê, você já está lá, no meio da estória. O baxinho era bom de causo viu. É o jeito dele se mexer quando contava, o modo de imitar com as mãos em movimento as patadas da onça . É o jeito solto de inventar num espaço vazio uma árvore e correr em volta dela como aconteceu lá no dia, só que com uma onça atrás dele girando junto (nessa hora eu lembrei dos desenhos do pica-pau). É a cara dele quando ele contou que percebeu que era uma onça. Antes ele achava que era um espírito da mata. “Aí eu fiquei triste, vi que era onça, fiquei triste”. Ficou triste? Fiquei imaginando onde, no meio da onça quase comendo ele, ele arrumou tempo pra ficar triste, donde eu venho tristeza é um troço meio vagaroso Daí que a estória não tem começo, meio e fim tudo certinho não, cada hora é uma parte, vai pulando daqui prali e volta tudo diferente. Às vezes é onça, às vezes é espírito, às vezes com espingarda às vezes sem, às vezes bravo às vezes triste, umas caras meio malucas, uns silêncios grandes também (aí fica o barulho da mata de fundo que acaba entrando na estória). Uma hora ela tava sentada no alto da árvore vendo ele passar, depois num tava mais, era um espírito, depois eles ficaram brigando até cansar, daí ele tava com fome, depois ele armou uma espingarda e praaa nos zóio da onça. Só sei que depois de ir e voltar um tanto de vezes, gesticular muito, imitar tristeza, árvore e barulho de espingarda, fazer silêncio quando imitou os parentes preocupados que ele não chegava (achavam que um espírito tinha roubado ele, daí ele fez o pessoal sentado no fim da tarde, tudo em silêncio, daí nessa hora eu juro que fui lá pro meio da roda dos parentes dele, impressionante), acabou que ele matou a tal da onça com um tiro na testa. Só que ele deixou ela lá, ninguém além dele viu a dita cuja, diz ele que dá azar levar para aldeia uma onça que tentou te matar. Mas ele contou pra todo mundo. Ah tá... Essa é boa, duas horas depois eu descubro que num tem ninguém que possa confirmar a estória, o que vale é o causo. Igualzinho aos caipira, só que completamente diferente. É cada uma... Depois dessa, nós ficamos mais um tempo lá, sentados na varanda da minha amiga, em silêncio e pitano. Depois a gente comeu mais açaí e foi embora, eu pro rio, ele pro alojamento indígena. Esmeraldino. Ele é filho de um dos três pajés de Maiá. Ele me falou que se eu aparecer por lá ele vai me dar muita banana. “Daí você come”, e fez com a mão como se estivesse comendo. Lá no rio fiquei lembrando dessas estórias dele. Mas depois parei. Quando você entra no rio aqui em São Gabriel, nada mais importa. Acho que no Ganges deve ser assim.

- E teve o Marcelo, um enferrneiro corintiano roxo que ficou contando as estripulias para conseguir ouvir os jogos do Corinthians lá no meio da área indígena. Vários jogos históricos do Timão ele passou enfiado no mato, sofrendo sozinho e ouvindo pedidos de escopetas e pasta-base de cocaína interferirem na transmissão. Falou de uma final (eu acho) que o Corinthiasn deu de sete a um. E ele lá isolado. Chorou, pôs a mão na cabeça e lembrou da Gaviões. Falou que nunca se sentiu tão sozinho na vida. No auge do desespero de torcedor, contou que até pedir rádio pras FARC o cara já pediu só pra não perder um jogo importante. Só podia ser corintiano.



- E sabe aquele lagarto grande que mais parecia um jacaré? Intão, era um jacaré mesmo. Mais duas aparições confirmaram. E o pior, ele só aparece na hora que tá passando Friends no canal a cabo. “É por causa da hora” deve pensar algum gaiato. É nada, é só mudar de canal que ele vai embora. Juro por Deus.



- Conheci o Israel, um tuiuca gente boa pra caramba. Acabou de chegar de São Paulo onde defendeu mestrado. Volta no mês que vem para defender o outro que escreveu em outra universidade. É isso mesmo, o cara escreveu dois mestrados ao mesmo tempo. E mais, como a esposa dele estava trabalhando muito, nesse tempo passava o dia todo cuidando sozinho do filho recém-nascido. Aqui em São Gabriel ele trabalha com os hupda, povo tradicionalmente discriminado e considerado inferior pelos próprios indígenas. Trabalha com eles para tentar mudar essa situação. Quando viu meu espanto com os tais dois mestrados me falou: “Não é difícil não, vocês gostam de enrolar muito e daí complica, eu sou muito direto, é só escrever o que eu sei, eu sou daqui, daí fica fácil”. Seus trabalhos são sobre fronteira. Ele é nascido em Pari-Cachoeira (dois dias de São Gabriel) em uma comunidade tuiuca; fez dois mestrados e cuidou do filho recém nascido, tudo junto morando em Guarulhos, Grande São Paulo. E ainda por cima, chama Israel. O cara manja de fronteira.



- Daí eu encontrei o Ladislau, um Tariana que é de uma das primeiras famílias a sair de comunidade e vir aqui para São Gabriel. Veio pra cá ainda menininho. Ele e o pai dele passaram um tempão me falando de como São Gabriel se fez nesses quarenta anos, os bairros que surgiram, os nordestinos que enriqueceram no comércio, no garimpo e no tráfico, como os igarapés foram sendo soterrados para servir de terreno para as novas casas. O Ladislau estuda à noite no EJA e vive discutindo com o professor de história que quer aprender a história da região e não a do Egito. Me pediu para eu ajudar ele a montar uma associação de agricultores e quer aprender a cultivar palmito. O pai dele tirava palmito do mato quando tava no meio da caça, mas nunca cultivou. Absurdo dos absurdos, São Gabriel não tem nada nem parecido com uma associação de agricultores. Quando soube que eu era psicólogo disse entender porque eu prestava tanta atenção no que ele falava, era pra saber se ele era louco. Eu disse que não, expliquei que eu gostava mesmo de ouvir as pessoas falarem da vida, ainda mais quando é tão diferente da minha. Ser psicólogo é bem mais que cuidar de loucos. Ser índio é bem mais que simplesmente manter tradições. Daí que estamos combinados, nem eu falo de surto psicótico, nem ele fala de rituais e pajelanças, nosso assunto predileto é política e palmito. Papo de gente doida.



-Essa semana morreu um menino de dezenove anos por exaustão em treinos no exército. O caso já está sendo devidamente abafado.



-Outro dia conheci três moleque no rio e fiquei lá jogando conversa fora e banhando:
- Ô, a Ana quer te conhecer.
- Que Ana?
- A Anaconda!!
Rárárá.



- Acho que é isso então. Depois eu volto.

domingo, 26 de abril de 2009

Buenas! Depois de uns bons dias sem escrever nada, vortei. Não é que eu fiquei sem escrever nada, já tentei escrever duas vezes sobre meu atual paradeiro mas nas duas desisti. É impossível escrever sobre São Gabriel da Cachoeira. Escrever até dá - eu estou começando a quarta linha nesse momento - o que não dá é querer que essas palavras passem o que é esse lugar aqui. Talvez o que chegue mais perto é o que eu disse na última vez que eu deixei algo escrito aqui, SGC não existe, é uma cidade imaginária, uma obra de ficção. Vocês não imaginam a confusão que é estar em um lugar que não existe. Pelo menos pra mim, tão acostumadinho (esses padrões burgueses ...) com a coisas sempre existindo ao meu redor. O Ítalo Calvino tem aquele livro, "Cidades invisíveis", em que ele vai descrevendo uma cidade mais maluca que a outra e você não sabe direito onde aquilo é verdade onde não é se aquilo que ele descreve lá existe mesmo, seja lá em qual nível. Pois é, São Gabriel da Cachoeira é uma cidade invisível. E Imaginária e irreal e impossível. É o lugar mais inacreditável que eu já vi. Daí que o melhor jeito de falar dele é falar um monte de coisa meio sem ordem muito certa, lembranças, observações, dados objetivos, daí quem tiver lendo que crie sua própria lógica, sua forma de juntar tudo. Realidade material e devaneios, miséria braba e mundo miraculoso palpável, tudo misturado em um lugar que não existe, em uma cidade inventada no fim do mundo. É nóis em São Gabriel da Cachoeira, a cidade com maior número de indígenas do país.

- Antes de tudo, uma pequena correção, eu não estou mais em nosso país. Aliás eu não estou mais nem nem na Terra. Se a região Norte do Brasil parece outro planeta, São Gabriel é realmente em outro planeta. Dá pra ver a Terra daqui, nem é tão azul assim como dizem. Até que é meio perto. È até estranho, porque esse lugar é tão louco que parece outra galáxia. È verdade, acreditem.

-Esse lugar é uma "falha na Matrix" que não passa. Aqui, a realidade ordinária é uma "falha na Matrix" constante. Não estou brincando, é verdade mesmo. O tempo todo você vê cenas que incluem muitos mundos e tempos dissonantes. Hoje no por do sol tive a impressão de ter visto um pterodátilo, mas só que foi rápido, não deu pra ter certeza. Amanhã eu confirmo, deve ter sido mesmo.

- Existe um portal mágico no Rio Negro que vai parar direto na Índia. Eu lembro na hora que passou, só que como eu não sabia o que era nem atinei. Só descobri aqui. Na verdade estou em Varanasi. Não estou brincando, é verdade mesmo. A Índia fica no noroeste do Amazonas, ou vice-versa. E ambos (que são o mesmo) ficam em outro planeta que parece outra galáxia. E são invisíveis. Sacou?

- aqui vende cozido de paca na feira.

- são 22 etnias, umas quinze línguas (fora o português e espanhol), faladas por todos os lugares e de maneira misturada. Ouvi uma conversa de maku misturado com portunhol na fila do Banco do Brasil. Outro dia, um tariana que estudou em um seminário para ser padre falou comigo em francês e em inglês sem perceber direito (tinha tomado umas duas a mais, o normal é ele falar umas das cinco línguas indígenas que ele conhece). Estávamos de frente para uma maloca que fica na cidade e com a gente tava também um pajé Baré que tinha ido estudar medicina em Cuba, só que não passou nas provas. Não lembrava o nome da cidade, precisou de três copos de caxiri pra ele dar um grito na minha orelha, "Havana!!". Ele agora mora em uma aldeia baniwa que fica a três dias de canoa de São Gabriel. Lá, é pajé e enfermeiro. Devia ter perguntado o que ele acha do Fidel, vacilei.

- A paisagem é tão estonteante que a linguagem linear não dá conta de descrever. Teve um dia que eu passei o dia lendo sobre os mitos dos índios dos Uaupés (um rio daqui) e fui tomar banho de rio no fim da tarde. Entendi que o que eu estava vendo não era bonito, deslumbrante, estonteante ou milongas que tais. Era a aldeia celeste onde chegamos quando a sucuri gigante abre a terra para a lua sair. A palavra mítica dá sentido a esse lugar, a outra, linear e xôxa, é o holograma da Matrix. Mas esse falha toda hora. Ainda bem.

-Dexa eu tentar descrever melhor esse papo de Matrix. Vou tentar ser bem explicadinho, porque o negócio é enrolado. No filme lá tem dois mundos, aqui não, é pelo menos três. Mas começa com dois. Assim ó, tem dois básicos, o mundo do indígena e do não-indígena ou, como eles dizem, tem o jeito do índio e o do branco. Esses dois se explicitam de muitas formas, divisão sócio-econômica, um anda a pé e o outro de carro, um tem um ritmo frenético esquizofrênico e o outro tá sentado em uma pedra olhando o invisível. Um tem um convívio hipnotizante com o rio, o outro com tudo que lembra Manaus-São Paulo-Nova York. Claro que essas duas bandas se interpenetram, e que tem hora que se confundem, não é oito e oitenta, mas fica bem clara essa divisão. Daí que o mundo indígena também e dividido em dois, esse mundo (visível) e o espiritual (invisível). Nesse mundo daqui funciona uma linguagem mais prática. O espiritual se traduz pela linguagem mítica. Daí fica três mundos então: o mundo do não-índigena, o mundo do indígena e o mundo mítico (que na verdade são vários, depende da etnia). Intão, Matrix aqui disfarça o real de asfalto, mas tamém disfarça de rio, já que "na verdade" o real é uma cobra mítica seja de asfalto, seja de água. Na verdade, verdade verdade mesmo, o real aqui em São Gabriel é o convívio desses três mundos o tempo todo, o mundo real é um quarto mundo onde esses três mundos vão se combinando de diferentes formas, cada hora um aparecendo mais, as vezes dois, sempre uma confusão, mas com uma harmonia misteriosa de fundo ligando os pedaços. São Gabriel é um caleidoscópio em movimento. Os mundos são as diferentes pedrinhas. Uma cobra que vira uma rua que vira um rio que é uma cobra. Uma rua de asfalto te leva até a aldeia celeste. Crianças se banham em uma cobra mítica. Pedaços de plástico são cada vez mais freqüentes nas corredeiras do Rio Negro. Caleidoscópio mítico-invisível-transcedental-indiano em outro planeta de outra galáxia da Matrix via interneti. Tudo isso falado em quinze línguas e com um sonzinho distante de cítara ao fundo.

E aí, deu pra entender?

- 90% da população daqui é indígena, só que são os 10% não-indígenas que botam a mão na grana toda. Muitos cearenses comerciantes, militares e profissionais da saúde. Os indígenas vivem uma situação de muita pobreza e enfrentam sérios problemas com alcoolismo, abandono familiar e prostituição infantil.Tem uns tres ou quatro aqui que eu amarraria lambuzado de mel encima de um formiguero.

- Desde que eu cheguei aqui que eu repito uma frase várias vezes por dia: "Esse lugar não existe."

- Outro dia fiz amizade com um ianomâmi. Ele me cumprimentou com um aperto de mão e não largou mais. Enquanto a gente falava ele passou um tempo segurando a minha mão e balançando ela de leve. O Gélio foi criado em Manaus e hoje está no exército. A maioria do pelotão aqui de São Gabriel é formado por indígenas. Tenho muita vontade de conhecer melhor os ianomâmi.

- Dia 19 de abril, dia do índio, teve um evento no ginásio da cidade. Minha amiga Marília pediu minha máquina digital para gravar a apresentação de uns jovens com quem ela trabalha. Era o grupo de street dance de São Gabriel.

...

- Nesse mesmo dia ouvi um diálogo entre um Tukano e um professor universitário de Manaus. Falavam de mudanças climáticas. O líder tukano falou da astronomia do seu povo, de uma tartaruga feita de estrelas e perguntou a visão do professor. O professor citou o zen, retornou com outra pergunta e falou da nossa possibilidade de capturar a não-matéria. Pelo que eu pude perceber, parece que eles se entenderam muito bem. Coisas de Varanasi...

-Eu andando para lá e para cá com uma máquina digital. De vez em quando, uma fotinho. Num tô dizeno que esse lugar é uma falha na Matrix...

- Aqui tem muitas igrejas evangélicas.

- O canal a cabo da casa da minha amiga tem muito mais canais de filmes que os que eu conheci em São Paulo. Outro dia passou na varanda o maior lagarto que eu já tinha visto, parecia um jacaré. O "quintal" da Marília é uma floresta que só acaba na Colômbia. Na TV estava passando Friends.

- Quando você entra no rio aqui em São Gabriel nada mais importa.

- Outro dia eu tava na rede e vi um moleque fazer cocô no mato e comer um pão ao mesmo tempo. Não sei direito porque, mas acho que isso tem a ver com tudo isso que eu estou escrevendo.

- O beiju daqui e totalmente insosso. É pra servir de contraponto com todo o resto.

- Aqui em São Gabriel entendi o que leva esses sadhus indianos a sentar no chão e levantar o braço sem abaixar durante trinta anos. Depois de conhecer São Gabriel acho essa atitude muito coerente.

- Em São Gabriel existem cerca de 550 comunidades indígenas. São 25.000 pessoas em uma área do tamanho da metade do Estado de SP. A menor densidade demográfica do Brasil. É só mata e rio. Sabe quando você manda alguém "lá pa puta qui pariu"? Intão, é aqui.

- A estrutura urbana da cidade é feia, sem planejamento e cheia de problemas típicos de uma cidade grande. O grande fluxo de capital aqui para São Gabriel (por causa dos milico e das ongs) e a conseqüente disparidade social faz com que a cidade tenha problemas como alto índice de violência juvenil, roubo e tráfico de drogas em proporções gigantes para o tamanho da cidade. Boa parte dos habitantes vive em bairros semi favelizados na periferia da cidade. O centro da cidade - feio e barulhento - é, de longe, a coisa que mais parece um holograma fictício por aqui. É totalmente desconjuntado com o meio, esquisito de tudo, totalmente dispensável. O Keanu Reeves podia muito bem reprogramar essa parte.

- É comum ver indígenas caídos de tanto beber pelas ruas da cidade.

- Diz que tem um pajé ianomâmi na região que outro dia derrubou um helicóptero só na reza. A história é meio famosa por aqui, muita gente diz que é verdade mesmo. Mas não pense que foi fácil, ele quase não conseguiu.

- Outro dia fui em uma espécie de condomínio de militares aqui. Parecia a "ilha da fantasia". Juro que se o Tatu - aquele anãozinho de paletó branco e voz de apito engasgado - viesse me receber eu não ia achar estranho.

- As crianças indígenas só andam em bando, pescam, tomam banho de rio e ficam trepando em árvore o dia inteiro. As crianças indígenas são igualzinhas às caipira, só que completamente diferente.

Acho que por enquanto é isso, depois eu volto. E vai demorar bem menos agora Até.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Olá!

Depois de um pouco mais de dois meses, finalmente cheguei a São Gabriel da Cachoeira (SGC). Do Maranhão até aqui é um degradê (é assim que escreve?) perfeitinho do negro pro índio. De São Luis, onde a população é quase toda negra até aqui, onde todo mundo é indígena (fora os cearense, é claro).

No trajeto, a mudança gradativa, bem matizada mesmo, muito legal, cada lugar que você vai chegando vai vendo os traços irem se modificando, indo mais pro indígena, o Pará é o meio do caminho, puta miscigenação, daí quando começa o Amazonas já é bem mais indígena e aqui em SGC intão... SGC é uma cidade completamente diferente de tudo. Mas antes disso, a chegada até aqui. Da última vez que escrevi estava em Manaus, na véspera da saída para Barcelos, uma cidade que fica no Rio Negro, no caminho daqui para Manaus. Escolhi passar uns dois dias lá ao invés de ficar parado em Manaus. Daí que eu peguei mais um barco, mais dois dias, mais água e floresta sem fim.

O Rio Negro é maravilhoso. Entre ele e o Tapajós o páreo é duro. Só de lembrar do Tapajós agora que eu escrevi parei para ficar lembrando um pouquinho. O rio conversa com a gente, é impressionante, ele é lindo, azul, vivo, antigo, cheio de memória dos tapajoaras que viveram ali há 8000 anos, muitos dizem que foram os primeiros daqui. Tudo isso o rio te fala, ele é muito muito vivo, parece um amigo que eu fiz na viagem. Vontade de voltar lá e passar aqueles quarenta dias pelas comunidades ribeirinhas. Já pensou... Mas agora eu tô no Negro. É deslumbrante. Ele é negro mesmo, e eu acho que tem a ver com isso ele formar um espelho perfeito com a floresta e o céu (que é imenso também, nunca vi umas nuvens tão grandes). O céu por aqui é bem mais bonito que mais para trás, não é tão nublado, tem estrela, por do sol, nuvens cheias de formas.
Daí imagina então, floresta sem fim, um céu deslumbrante, tudo isso dobrado no espelho do rio (que dependendo da hora fica roxo, prata, não é só negro não). Tem hora que dá vontade de chorar de tão lindo que é, parece até meio mentira, efeito de alucinógeno sei lá. E é durante muito tempo, é comprido, três quatro, cinco dias, ce dorme, come, joga dominó, conversa, e continua lá, num passa o efeito. E eu descobri que esses números são porque estou navegando nos grandes rios, que são como avenidas principais. Se vc vai para as quebradinhas, que são infinitas, são 15, 20, 25 dias! E são barcos pequenos, canoas grandes bem dizer, de sete, oito metros de comprimento por uns dois de largura. O pessoal vem trazer coisas para vender (açaí, piaçava, tucumã) e levar produtos. Ou então agentes de saúde, alguém da prefeitura, essas coisas. Muitos vivem mais nesses barcos que em casa. Muitos, o barco é a casa. Famílias inteiras – e grandes – nesses barquinhos, cruzando os rios e igarapés dias e dias, parando pra pescar, caçar, dormir. Nos portos das cidadezinhas e vilazinhas do caminho você vê um monte deles, de vez em quando passa um margeando a floresta (pelo que entendi eles não gostam de andar muito nos rios grandes, só quando precisa) cheio de criança se trepando e uma montanha de açaí ou outro produto extrativista, uma fumacinha de alguma comida e adultos de cócoras, as vezes uma rede. Cena típica desse pedaço de mundo aqui.
Aliás, há outras coisas que participam o tempo todo da vida cotidiana daqui e que eu tenho a impressão de que pouco se fala delas, fica sempre se martelando os grandes temas – ribeirinho,caboclos, a imensidão da floresta, etc – e se esquecem coisas “desimportantes” que falam muito sobre a vida daqui. Por exemplo, o DVD acústico do Amado Batista! Vocês sabiam que o Amado Batista gravou um DVD acústico? Pois é, impossível não descobrir isso aqui no Norte. Ele está passando em quase todas as televisões de restaurantes, botecos e vendinhas daqui. Já decorei metade das músicas, a ordem delas, os artistas convidados e tudo. Aliás, cresceu em mim algo que eu já tinha, mas que a falta de um ambiente favorável nunca permitiu que ganhasse uma forma mais nítida. Descobri, perdida no fundo de minhas memórias não visitadas, uma admiração pelo Amado Batista. Não sei direito porquê, talvez só porque ele tem um jeito de ser gente boa, talvez porque as musicas dele me remetem diretamente a minha infância perambulando entre os nordestinos da Vila Sonia, sei lá, sei que acho o Amado Batista da hora. E, apesar das reclamações de muitos dos meus companheiros de almoço e cervejas por aqui, me recuso a ir embora de um bar no meio de uma música dele, espero pelo menos até o fim dela, as vezes até o fim da próxima, canto junto timidamente, sinto a música, dou aquela última olhadinha para a cara dele, um suspiro discreto e daí sim vou embora. Podem reclamar mas num tem jeito, já virou uma espécie de ritual, esperar mais uma ou duas músicas do Amado antes de levantar da mesa ou sair do balcão. Aconselho a experiência, mó energia, só vivendo pra saber.

Outra coisa que está o tempo todo presente onde quer que você vá são os evangélicos. Você sabia que o Norte é a região do Brasil com maior porcentagem de evangélicos do Brasil? Sim meus irmãos, os evangélicos. Nada de pajés, curandeiros caboclos e seres miraculosos da floresta, o negócio aqui é evangélico pregando a palavra. Muitos, em todo lugar. E tem um negócio interessante aqui, que eu não sei como é direito em São Paulo, vai ver que eu que não presto muita atenção quando to lá, mas aqui tem uma certa naturalidade, uma “tranqüilidade” evangélica. Conversa-se tranquilamente sobre Jesus aqui. Nas mesas de padaria, nas redes dos barcos, nas banquinhas de comida. Sem gritaria, dedo em riste ou aquele clima meio ameaçador de fim dos tempos, por aqui o evangelho entrou no tempo distendido da Amazônia, bíblia sabor tucumã. Aqui ele não só é uma verdade a ser aclamada, mas um assunto que preenche a trama miúda do dia a dia, tipo futebol, novela, quem matou quem. Um salminho aqui, é fulano que se converteu, um milagrinho que rolou outro dia , tudo na boa, sem afetação, comendo uma coxinha (outra presença constante pouco citada, açai e tucupi todo mundo fala, e a universal coxinha? ) meio cochilando no barco, toda hora é hora de uma lembrança, de uma pregadinha básica. Deve ser a tal estória “Jesus vive entre nós”, qualquer hora eu trombo com ele comendo um açaí por aqui. Com tapioca provavelmente que ele não é besta. E peixe né, diz que ele gosta... Por esses dias tenho conversado com vários “irmãos”, sempre no barco; um pastor importante da região que me contou da politiquelas daqui (Brasil é uma merda memo), uma moça que ficou na cama deprimida três anos até ir pra igreja, uma macuxi líder dos trabalhadores rurais da região dela- uma mulher legal pra caramba- uma senhorinha que passeava no barco dando uns folhetinhos. Daí que de tanto conversar e ouvir esse povo nesses dias, acabou que eu descobri um negócio sobre mim, uma unanimidade entre todos os crentes com relação a minha vida: Deus tem um plano pra mim. Todos me falaram desse tal plano, uns de maneira mais sutil ( “se vc está onde está, vindo de onde vem e indo para onde vai, isso só pode ser um plano de Deus”, ah tá...), outros mais diretamente (“é um plano de conversão, você vai ver!!”) e outros bem incisivos, meio ameaçadores - deve ser a escola evangélica paulista- “quando chegar a hora Deus vai dizer: Lembra aquela moça da rede ao lado naquele barco? Era uma enviada e você não ouviu, agora é tarde!” E tome o capiroto me levano embora! Daí que eu parei dois dias em Barcelos, uma cidadezinha pequena, pracinha, forró por todo lado, Amado Batista nos estabelecimentos e aquele monte de menina (bonitas, muito bonitas) emperequetada e de salto alto dando volta nas noites do fim de semana. Em Barcelos entendi mais profundamente o tal de “ser brega”. Dizem que o Pará é a terra do brega, quem falou isso não chegou até o Amazonas para conferir. Vai ser brega assim lá em Parintins!! Muita maquiagem, brincos, colares e pulseiras enormes, os cabelos cheios de alguma coisa (que eu não sei o que é, mas que eles tão cheios de alguma coisa eles tão), saltos agulhas cheios de brilhantes e roupas cheia de babados e floreios mil e ombros só de um lado aparecendo. Na pracinha de Barcelos me senti um macaco no SP Fashion Week. Teve uma lá que resolveu listar o que estava errado em mim, começou na unha do pé que tava mal feita, suja e não sei quê e veio subindo até meu cabelo que está “horroroso”, queria me levar pro cabelereiro no dia seguinte. Consegui escapar. Fora o povo dançando. Meu Deus, o que é aquilo, parece um show de malabarismo, contorcionismo, as chinesinha do circu du solei perde praquele povo lá. Fiquei bem impressionado mas não gostei muito não, muito pirotécnico dimais, sou mais o esquema xiadudaxinela memo.

Por fim, mais uma dose de indignação com o esquema de produção e escoamento das coisas aqui. Em Barcelos, o absurdo chega a tal que uma banana é 50 centavos porque vem de Manaus. No meio da Amazônia, a banana chega até o mercado depois de três dias de balsa!!!!!! È simplesmente inacreditável!!! Fora um ou dois produtos da floresta, tudo vem de Manaus!! Dá vontade de voltar pra baixo,(ou ir ate Paraopebas na escola do MST) fazer um curso decente de agrofloresta e voltar pra cá dedicar a vida, o Brasil tem cada uma que nem depois de se escaldar vc deixa de ficar impressionado. Amazônia tá na mão de meia dúzia de prefeitos que simplesmente só roubam, mandar matar e exploram a prostituição infantil, só isso e mais nada. Filhosdaputa.

Enfim, depois peguei mais dois dias de barco, o Rio Negro só vai ficando mais bonito e silencioso, é nítido que o número de habitantes vai se escasseando, é floresta e rio e céu sem fim e com um princípio de relevo montanhoso. Mais conversas, cervejnha em portos de vilazinhas ribeirinhas (e dá-lhe Amado) e mais ditados muito engraçados (devia anotar, já era pra ter mais de cem, na hora guardo e penso: depois eu anoto, daí já viu né). Essas amizades de barco são um barato. Amizades de dois, três dias de viagem, no barco a vida pára e se cria um drama diário paralelo ao mundo de fora do barco, um cotidiano provisório para se criar a tecitura do tempo até se chegar no pouso final. Quem tiver vontade e paciência consegue escrever um tratado filosófico só com base nessas viagens de barco, o que rola com a gente quando está ali, em “pausa”, esperando chegar para vida normal continuar. Enfim... Agora cheguei em SGC, onde estou hospedado na casa da minha amiga Marília, mas vou deixar pra falar disso daqui a alguns dias quando tiver melhor assentado as primeiras impressões sobre esse lugar aqui. Vocês não fazem idéia, é inacreditável, agora o negócio ficou sério, SGC não existe, tudo que eu escrever daqui pra frente é mentira, eu ainda tô em Barcelos e resolvi escrever uma ficção sobre uma cidade imaginária. Inacreditável, imenso, estonteante, incrível, impressionante, essas palavras ficam se repetindo, quem quiser manda uns comentários com adjetivos desse tipo pra me ajudar gente eu agradeço, mas acreditem, é verdade mesmo, a Amazônia é bem mais que isso, falta talento com as palavras para conseguir descrever.

É isso, Bruno.

terça-feira, 24 de março de 2009

olá.
Diretamente da sauna amazônica chamada Manaus para meus dois leitores (contando minha mãe e meu pai). puta lugar quente! Se Belém parecia uma cidade improvável, Manaus é tão urbana que improvável passa a ser a floresta em volta. no colégio, uma profesora para explicar o surrealismo deu o exemplo de uma foca na fila do banco. 'E tão fora de qualquer coisa uma foca na fila do banco, que o que passa a ser esquisito é o banco em volta da foca. manaus é mais ou menos isso. parece Sao Paulo!! No barco pra cá vim conversando com um cara da marinha, um senhor (filho de cearence, óbvio) que já rodou tudo por aqui e conhece bem tudo. Sabe a tal da Zona franca de Manaus? ë um complexo com aproximadamente (pasmem) 600 industrias!!! Dá para acreditar? 600 industrias no olho do coração da Amazônia. lógico que é uma merda né, o cara veio me explicando lá. Aliás, a viagem até aqui foi completamente diferente da outra. o barco era maior, menos pessoas, mais rápido, comida mais bem feitinha, até as pessoas eram muito mais comportadas. Tudo diferente. Em santarém fiqui sabendo que o 11 de maio é o pior barco do trecho Belem-Manaus, várias pessoas tiveram a mesma reação de "só podia ser" quando eu falava o nome 11 de maio. O pior foi o cara que me vendeu a pssagem para cá, que falou que só vende passagem pro 11 de maio se o comprador insistir muito. Vai veno...pelo que eu entndi - e vou poder comprovar , já que tenho algumas viagens anda por fazer - o padrào de viagem é muito mais parecido com a que eu fiz até Manaus. Bem mais digna... e chata!!!
Dexa eu falar um negócio sobre santarém que eu esqueci da outra vez. A cidade é linda, clima ótimo, o Tapajós e maravilhoso, delícias culinárias, o povo massa - cearense de água doce - e tal e tal. Só que eu esqueci de citar um "detalhe" que chama a atençào na paisagem da cidade: um sojioduto enorme da Cargill que sai do porto para uma estrutura também enorme para embarque do grão. Na época da colheita me falaram que fca uma nuvem de fertilizante sando do tal sojioduto e que ningu'm perto respira direito. O vento leva a tal nuvem direto prum bairro da cidade que já começou a apresentar os primeiros problemas de saúde devida a fumaça.
Dai que eu cheguei em Manaus e me despedi do conhecedor lá e das minhas outras duas amigas que fiz no barco - foram criadas no interior de Santarém, no "sítio" e ficaram me contando da vida lá, um barato eu devo fazer cara de super intressado quando o povo come'ça a contar essas estórias porque eles não param mais. Aliás, qulquer hora dessas vou escrever sobre minha pesquisa despreocupada (pesquisa em rede) sobre a relação entre generos no Brasil de cima. Do reggae de Sao Luis, passando pelos corredores da casa de Batisá em Alcantara, pelas noites no 11 de maio e por todas inúmeras conversas "em rede" com o povo que mora aqui, a conclusão é a mesma:não fui criado no mesmo país , nasci e me criei na Noruega onde somos sensatos, ecológicos, conscientes, super conversamos e gozamos muuuuuuuito menos. Girando em torno de tres temas fundamentais: ser corno, ser baitola e ser rapariga (romanticos, feministas e revolucionarios, tremeis!!) a trama míudas da relaçoes aqui de cima desobedece todos os preceitos canonicos da boa vida burguesa. E dá-lhe Calypso!! Ah se o Zaratrustra tivesse acabado por aqui viu. Acho que aquele simbolo do nazismo ia, no mínimo, ser mais redondinho...
Voltando ao barco, cheguei em Manaus, comi um tucunaré ouvindo as boas vindas de um pernambucano e fui correndo ate o outro porto tentar pegar um barco pra sao gabriel. Isso era sabado. os barcos tinham saído na sexta, agora só na outra. o tempo da Amazonia e outro capitulo a parte, com certeza todo mundo já ouvu o papo de que"na amazonia o tempo é outro", ""as distancias são enormes" e sei la mais o que. Voce só entende realmente isso quando está aqui. Perdeu o barco? Só daqui a uma semana, qualquer lugar, quinze horas é do lado, e chove, e as coisas não secam, e as informações não batem e os rios sao enormes e as palmeiras também, e voce sua e a roupa não seca, e agora vai! chove, para tudo de novo, recomeça...tenho duas hipóteses: a primeira é que eu ainda nao entrei nesse ritmo e acabo ficando mais incomodado do que deveria. Com certeza isso é verdade, mas acho que tem uma outra coisa que também conta, mas só vou saber la em sao gabriel. dai eu conto.
Aqui em Manaus estou ficando na casa da Fafa, uma amiga da Bau. Ela é muito legal, nunca me viu e esta me recebendo muito generosamente, é diretora de uma unidade de conservaçao aqui de "perto" e tem conversado muito comigo do seu trabalho e da sua vida no Amazonas. Para se ter uma idéia desse negócio do tempo, ela e o Juça (seu marido que eu nao conheci por que ele esta trabalhando em campo, mas segundo a lidia que estava aqui hoje é mais gente boa ainda que a fafá) trabalham os dois aqui em Manaus e direto viajam e ficam 15, 20 dias sem pisar em casa.Conheci outras pessoas aqui que também sao assim, e meio normal para quem trabalha com ambientalismo por aqui, essa vida estendida,é o tal do tempo amazonico... Pior é els contando que tem que explicar isso pros burocrata doonos das grana dos projetos que estào em Brasília, em Sao Paulo...
Resumindo (depois de muito escrever), o tempo amazonico esta me segurando em Manaus, para diminuir meu tempo nessa cidade das 600 fabricas, vou amanhà (será?) para Barcelos que é no caminho de sao Gabriel e é super bonita e devo chegar em sao gabriel entre sabado e domingo ou segunda (tempo amazonico, tempo amazonico, é tipo um mantra, da pra passar o dia repetindo, o pessoal comenta que ate os relogos aqui se enganam, entre um nascer do sol e outro eles ja deram mais que duas voltas, o dia aqui tem entre 25 e 32 horas européias, depende da chuva e do tanto de roupa que deve permanecer enxarcada) e dai parar um tempinho maior. La em sao gabriel é tudo muito mais pertinho e vai ser mais tranquilo, a média de distncia das aldeias é só tres dias de barco... Por enquanto é isso intão.
Ah, um dos acontecimentos do 11 de maio. uma série de roubos, tênis, relógios, carteiras, celulares, malas inteiras!!! e minha recém desvirginada maquina fotográfica. Devo confessar que fiquei aliviado. Ainda bem que foi baratinha. Talvez eu arrume uma em sao gabriel. Inté intão.