segunda-feira, 1 de junho de 2009

só agora que eu vi que dá pra por título

Buenas! Antes de mais nada, gostaria de avisar que esse é o maior escrito que eu já botei aqui. Haja paciência pra quem quiser ler. Mas também ele provavelmente vai ser o último em pelo menos um mês, talvez até um pouquinho mais. É que parece que agora vai dar certo uma viagem para a área indígena dos ianomâmi. Já peguei a tal da autorização da FUNAI e agora estou só vendo os últimos detalhes. A comunidade chama-se Maturacá. Devo passar um tempinho lá hospedado na casa de um amigo. Assim que eu aprender a pegar jacaré na dentada volto. Vou lá tomar xibé direto na veia e conversar com o pico da neblina pra ver se eu fico menos tapadinho um pouco. A Marília tem um CD dum cara aqui que ela não sabe o nome, mas que é bom demais, som de viola meio sertanejo já entrando no Nordeste. Tem uma música lá que o refrão é assim; "Eu tentei correr de mim, mas pra onde eu ia eu tava, quanto mais eu corria, mais pra perto eu chegava". Pois é. O escrito começa aí embaixo, vai como tava no computador, já tem uns dias que ele tá aqui só que eu tava com preguiça de ir até a internet. È isso então, até depois.


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- Buenas! Continuamos aqui em São Gabriel da Cachoeira, a cidade imaginária, agora já um pouco de saco cheio de esperar as burocracias da FUNAI e outros tantos empecilhos que impedem a entrada em área indígena. Até dentista, enfermeiro e outros profissionais da saúde já contratados, às vezes ficam mais de dois meses esperando pra conseguir entrar em área, que dirá eu, mero barbudo desinstitucionalizado. É o tempo amazônico somado ao desleixo total e às politiquelas da nossa aldeia-nação Bruzundanga, vulgo Brasil. Enquanto isso aqui pela cidade continua a overdose de tradição/modernidade em extremos agudos e as setecentas e cinqüenta e duas epifanias por dia e uma vontade de falar sobre as palavras.

- Eu não sei se deu pra entender direito no meu último escrito, mas eu andei às beiras do Diazepan. "Esse lugar aqui, só na base do ansiolitico" foi meu pensamento um dia desses aí. Decididamente São Gabriel da Cachoeira não é um lugar fácil. É um lugar, estonteante, fantástico, miraculoso, deslumbrante e todas essas coisas, mas fácil ele não é não. É muita estória junta e misturada o tempo todo sem parar, tem uma hora que a idéias começam a dar pirueta multidimensional isvleichan. Por exemplo, isso que acaba de acontecer, escrever isvleichan. Que diabos é isvleichan, alguém pode me dizer? Mas aqui é assim, você pensa isvleichan, escreve isvleichan e se marcar amanhã surpreende alguém dizendo "eu achei muito isvleichan tal coisa". E o pior é que é bem possível que a pessoa responda pra você numa boa, afinal, são quinze línguas... E não pense você que a estória se reduz a uma questão lingüística. O grande problema - e também a maravilha - é que São Gabriel é habitado por objetos e seres que simplesmente não podem ser descritos pelo que conhecemos por língua portuguesa, as vidas e as coisas desse lugar simplesmente não obedecem ao velho Aurélio. É mesmo necessária uma outra língua. Ou quinze.


- Deixa eu explicar esse negócio de quinze línguas. Na verdade, umas são muito parecidas entre si e outras são faladas por poucas pessoas, então acaba que algumas são as "principais": tem a língua dos Tukano que dominaram vários povos do Rio Tiquié e impuseram sua língua (os tukano são a "elite" entre os povos indígenas daqui); tem o tronco lingüístico dos Maku (quatro ou cinco povos que se espalham pelos interiores e não nas beiras dos rio e que são o mais fudido no mundo indígena, tradicionalmente são escravos dos tukanos); os Baniwa do rio Içana, muito conhecidos por aqui pela conversão ao protestantismo, crente, em geral, é baniwa. Tem também a língua ianomâmi, que é o povo mais isolado de todos, tanto geograficamente como historicamente. Tem o nheengatú, imposto nos tempos passados pelos jesuítas e hoje predominante no rio Xié onde habitam os Baré, a etnia mais acaboclada da região toda. Pelo que eu entendi, bem por cima é mais ou menos isso. E tem o português e o espanhol (colombiano e venezuelano). Então, me corrigindo, não são quinze línguas que você ouve no dia a dia aqui. Fora as exceções, são só sete espalhadas em seis troncos lingüísticos. Super tranqüilo.


- Daí que como eu, fora o português, somente arranho de leve um portunholzinho bem safado, para mim as línguas indígenas soam todas como uma espécie de japonês diferentinho. Um japonês com sotaque. E não digo japonês como imagem de língua distante não, é que parece japonês mesmo. Tem até uma história aqui de que os indígenas são aparentados com os asiáticos. Já tinha ouvido falar disso antes e aqui eles também falam isso, ainda não perguntei muito pra saber com mais detalhes, sei que tem isso. E parece mesmo, o corpo, o cabelo e, se forçar um pouquinho a barra dá até para achar modo de vida indígena bem aparentado com o zen. Isso dava um bom motivo pra ficar na rede matutano, o zen e os índios da Amazônia. Tem tudo a ver mesmo... Mas enfim, daí a língua também é parecida, não as palavras, mas a cadência. Na sonoridade tem um monte de som anasalado que eu não consigo pronunciar. É um erre fanho dito com o nariz, difícil demais. E tem também um som constante de nh que tem que sair mais ou menos de detrás da língua, do ladinho assim. Quando você tenta falar, parece que tua língua tá amarrada. E é claro que esse sons da língua mãe deles são diretamente transportados para língua do branco. Eles enfiam esses sons no português que fica meio pra dentro e cheio de ênfase em algumas sílabas que aumentam de tamanho e de volume. Ao mesmo tempo, retiram as vogais solitárias, afinam a voz conforme vai chegando o fim da frase e desencanam de gênero certo (um galinha, um internet). E também adoram o termo "é assim", tudo que explicam dizem no fim, "é assim" ou então "lá é assim". Essa frase ocupa o lugar das vogais que eles engoliram ao longo da frase, é pra deixar o conjunto mais redondo. É que nem o "tá ligado?" do paulista (esquisito) ou o "sô" do mineiro (muito legal). É assim.
Nessa estória de línguas, na cidade o degradê vai de quem não fala um pingo de português até o meu amigo tuyuka que escreveu dois mestrados ao mesmo tempo. A maioria da cidade, que é de jovens e adolescentes já nascidos aqui (60%) é fluente em português e mal fala outra língua, é mais o sotaque que permanece no meio das gírias que eles aprendem vendo Malhação. É interessante que aqui em São Gabriel você testemunha o nascimento de um sotaque. Vai embora a língua de origem familiar – o que é uma tristeza – mas fica a música, o jeito de entoar a língua. É igual aqueles moleque da Mooca que não fala um pingo de italiano. Os filhos dessa molecada daqui talvez já sejam assim, mal conheçam o idioma dos bisavós. Tomara que não, mas se for isso, com certeza fica o sotaque. Outro dia ouvindo música em iorubá cantada em terreiro de candomblé e fiquei impressionado como a cadência parece a fala cotidiana do brasileiro. Nosso português é cheio de outras línguas, toda sotaqueada. Mas daí que aqui, ainda tem o sotaque do baniwa falando português, do ianomâmi falando Baré, do Desana falando espanhol e etecéteras do biritojúceras. E, tudo isso apimentada com o atropelo cheio de ditados do falar cearense. Ou seja, a linguagem cotidiana aqui em São Gabriel (leia daqui até o fim como se tivesse fugindo do sol quente) é feita um cabaré de cego dentro de um balaio de gato, é uma putaria palavratória, é um tal de uma língua se bolinano na outra, tudo entrado em tudo e saindo do outro lado todo melecado e diferente, uma esculhambação comunicativa de deixar qualquer um falando isvleichan e achar que é isso mesmo. Língua trepando com língua e fazendo filho que o L é a cara do pai mas as interjeições são a mãe todinha. Aqui cada frase vem de um rio diferente, a mesma frase vai até a Colômbia e volta antes virar só o olhar, aliás até os olhares aqui são em outro idioma, até a língua universal da alma aqui tem o Rio Negro correndo nela, quieto e espelhado, hora uma revolta, hora uma ternura. E tudo isso acompanhado de um monte de gestos e aquele outro negócio que eu esqueci o nome, tipo toc toc toc, chuáááá - onomatopéia a Marília falou aqui do meu lado, acho que é isso mesmo, sempre muitas onomatopéias e gestos e rugas e onças e canoa a motor Honda, e aí tem o outro mundo que se aproveita disso tudo e pula pra dentro das palavra e dos silêncio e das pessoa e da vida de todo dia que é sempre muita coisa misturada junto até que você entra no rio. xibé É assim, aqui é assim.
Esse lugar não existe. Só saio daqui quando aprender a falar isso em pelo menos cinco línguas.


- Queria muito entender por que essa palavra isvleichan apareceu no meio do texto. Tô no meio da Amazônia, água, céu e vinte duas etnias indígenas, e me vêm na cabeça uma palavra que parece saída de uma conversa entre dois surfistas estadunidenses. Os dois sentados na areia olhando o mar, um vira para o outro e fala "The waves isvleichan brother!". Acho que é de ficar vendo Friends e Seinfield na TV. O nheco nheco catchup dos besta lá vai entrando que nem mantra na minha cabeça e daí aparece assim como essa palavra. Chega dessa lavagem cerebral! Daqui para frente, Friends e Seinfield só com volume bem baixinho.


- Daí como se não bastasse esse monte de línguas que tem aqui, minha amiga chega em casa outro dia falando comigo na língua do P. Não demorou muito e descobrimos que a minha língua do P é diferente da dela. E que a língua do P, pode ser a língua do L, do V, do T. E que você pode muito bem criar uma língua do P T L ou então do D F P e assim por diante. E que todas essas são adaptáveis a todas às línguas, não só ao português. E que um dias todos aqui em São Gabriel poderiam resolver falar sua língua adaptada a uma língua que quiser inventar, Desana na língua do P, enhegatú na língua do F R, tuyuka na língua do V e assim vai. Tudo isso com sotaque, é claro.
Depois desse papo, passei a reconsiderar os ansiolíticos.


- E na época da faculdade, aquele monte de aula inútil e mal dada, pra passar o tempo eu ficava inventando palíndromo, palavras ou frases que, se lidas de trás pra frente são iguais. Ovo e Mussum, por exemplo. Daí, só pra constar aqui, já que o papo é palavra, teve uma naquela época lá que eu achei mais legalzinha. Imagina aí, dois irmão, gêmeos idênticos, um do lado do outro e com a mesma roupa, de frente pra um espelho.

SAI SÓSIAS! SÓ NÓS SOMOS SÓ NÓS! SAI SÓSIAS!


- Daí o cearense sai de casa aqui em São Gabriel e passa na casa do amigo:
-Ei ma, bó pu ri!
Tradução: olá amigo (macho), vamos para o rio!


- Angústia filosófica de mineiro:
- Oncotô? Comcosô? Poncovô?


- E tem aquela conhecida dos dois surfistas na hora de fazer café:
- Pó pô pó?
- Pó pó, pó. Valeu. Isvleichan!
- Isvleichan!


- Intão, não foi por acaso que eu falei aí pra cima de coisas imaginadas e palavras inexistentes. Creio que andei cometendo um erro conceitual. Clerópto não é uma fictícia nomenclatura científica para borboletas. Aquele dia que escrevi isso cometi um ato afobado, ainda estava meio chegando aqui e não entendi direito o que estava acontecendo. Agora, passado um tempinho, já entendo melhor o que aconteceu. Era o pajé jabuti que já começava a me assoprar dicas metafísicas. Ao imediatamente fechar o clerópto em um significado que me era útil ali naquele momento, além de cometer um ato egoísta, interrompi um processo da canalização telúrica que estava em curso. Canalização telúrica é um nome abaitolado para uma vivência muito comum aqui em São Gabriel que é, digamos, um "papo" com seu pajé invisível. Pajé invisível por aqui é igual a livro da bíblia em igreja de crente, todo mundo tem o seu. O meu, como já tive oportunidade de relatar, é um sósia de meu vivíssimo e ativo tio Joãozito, reencarnação de um monge tibetano. Daí que eu tô aprendendo a "papear" com meu pajé jabuti e tenho tido grandes avanços a partir da revelação do clerópto. Não vou ficar aqui me apegando a detalhes do modo como essas revelações tem acontecido, até porque tem coisa que não é pra se ficar contando assim. Prefiro ir direto ao ponto. Foi-me revelado que clerópto é o nome de uma espécie animal só existente aqui em São Gabriel e, mesmo assim, em alguns lugares apenas. E que, ao contrário do que afirmei anteriormente, cléropto é o cruzamento de borboleta (clér) com pterodátilo (ópto). O resultado é, para dizer o mínimo do mínimo, surpreendente. Mesmo o pouco que eu pude constatar até agora já é muito impressionante. Até agora, eu ainda não tive um contato visual direto e durante um tempo suficiente par descreve-lo em detalhes. Mas só pelo que eu já vi, descrevê-lo é tarefa árdua. Já vi um passando, mas foi rápido, hora de lusco-fusco e entre umas árvores. Mó energia. Deu pra distinguir algumas cores avermelhadas e uma forma meio arredondada. Seu canto ainda permanece um mistério, se é que ele canta. Como será o seu canto? Estou empolgado com essa estória tento imaginar como será ela batendo suas asas meio borboleta meio pterodátilo e como será seu vôo e confesso que não consigo criar uma imagem muito nítida. As revelações tem um ritmo muito próprio daqui e acontecem aos poucos. Até agora sei que eles existem, por onde passam e já consegui, como disse, ver um passando meio longe, e só. Mas sei que o pajé jabuti daqui a pouco virá com boas surpresas. Se bem que nossos dois últimos papos me deixaram meio confusos, mais atrapalharam que outra coisa. O lugar e o como não interessam, mas a penúltima mensagem dizia "clerópto é exato. Média aritmética. Um ovo". Num entendi lhufas. Pensei um pouco, lembrei da Vilma preparando um omelete gigante para o Fred, da Cida uma professora de matemática chata pacaralho que eu tive e acho que só. Muito enigmático, preferi esperar. Depois de uns dias, a última mensagem até agora. "borboleta mais pterodátilo, dividido por dois é igual a galinha." Como assim?!?! Essa foi foda né? Totalmente absurdo, alguma coisa deve estar errada, não é possível, vai ver que rolou uma linha cruzada com algum benzedor caipira, sei lá, prefiro nem entender. Galinha não tem nada a ver com borboleta. Com um pterodátilo então... "Igual a galinha", onde já se viu, só faltava essa agora. Esse Joãozito tem cada uma...


Daspalavra


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- Daí que aqui na casa tem um Luis Fernando Veríssimo que eu dou uma lida de vez em quando. Pois bem, esses dias estava até escrevendo alguma coisa no computador, quando a Marília me chamou para comer uns pãezinhos de queijo com catupiry que ela havia assado. Sentamos cada um de um lado da mesa, o Paulo, namorado dela, na cabeceira, e ficamos conversando e comendo. Uma hora o Paulo levantou e foi lavar uma loucinhas acumuladas na pia que fica logo atrás da mesa. Deu dois minutos a Marília fala:
- Sabe uma coisa que eu reparei? Que você sempre deixa um pãozinho de queijo pela metade.
Daí eu:
- Isso tá parecendo cena inicial de crônica do Veríssimo, duas pessoas, um pão de queijo, um comentário de uma delas. Dá até vontade de escrever sobre isso. De como isso é parecido com uma crônica do Veríssimo
- Não Bruno, é sério, é uma espécie de obsessão sua.
- Eu sei que é sério, e é sério também que dá vontade de escrever, eu colocaria por exemplo essa parte de você falando que é sério.
- Não, mas aí não dá pra falar direito, você nunca reparou que sempre deixa uma metadezinha?
- Sei lá, acho que já reparei, mas se a gente entrar nesse papo vai ficar igualzinho a uma crônica do Veríssimo, sabe né, aquele livro que tem aí.
- Hum hum (acede de leve com a cabeça) Faz tempo que você faz isso?
- Tá bom, tá bom, você falando eu lembrei da minha mãe falando pra eu fechar as gavetas. Eu sou ruim em fechar as gavetas da minha vida. E talvez em comer os pãezinhos por completo. E acho que talvez uma coisa tenha a ver com a outra.
- Você não está falando muito sério, só está pensando no que vai escrever.
- É que tem que ver como isso vai terminar para eu escrever depois.
- Mas assim não dá pra conversar, eu acho que isso é sério mesmo, você não está prestando atenção no principal, só fica falando que vai escrever.
Nessa hora, o Paulo, que ainda está lavando a louça – suas costas estão bem na minha frente - retoma o papo anterior:
- Vocês dois com esse negócio de socialismo...
Daí volta o papo de antes, ter grana, individualismo, capital e essas coisas todas. Depois a Má sai da cozinha, O Paulo vai pra rede e eu volto pro computador e esqueço do mundo. Daí um pouquinho a Má me cutuca:
- Ó. (e me mostra a forma com um pãozinho sem um pedaço).
- Que qui tem?
- O fim para o que você vai escrever, bota que no fim fui eu que deixei só a metade.
- Será que fica bom?
- Sei lá, tava sem fim.
- Mas esse pedaço não é metade, é bem mais. Não é a mesma coisa, mas talvez isso que a gente conversou agora seja um bom final, você tentando dar um final.
- é...
- Mas nunca vai ser um final que nem os do Veríssimo, a verdade é que a gente nunca vai conseguir...
- Porque se é pra ser socialista, vamos ser socialista então, tem que comprar catupiry pra todo mundo!
Daí os dois voltaram pra discutir com o Paulo, o bicho tava a fim de discutir nesse dia, não agüentava mais ser acusado de capitalista. Vou começar a reparar se sempre deixo mesmo a metade de um pãozinho. Obsessivo o nariz dela, um mundo com um pãozinho pela metade é um mundo favorecido, um mundo que carrega em seu seio uma prova que a incompletude pode ser feliz... Meio pãozinho descansando sobre a mesa... que imagem...


*


Acho que é isso então.
Anhethurren, saionará oxenti nóis tudo. Saravá os cabôco!! Daspalavra.
Depois eu volto aí.