sexta-feira, 22 de maio de 2009

Buenas! Estou em dias filosóficos. Numérico-filosóficos. Tô querendo retornar ao dois. São Gabriel é um balaio de gato excitado, tudo ao mesmo tempo agora uma coisa de cada vez. Tá doido, assim ninguém guenta, é necessário arrumar as coisas. Pelo menos um pouquinho. Chega de um zilhão manifestado de mil maneiras no mesmo instante. Eu quero de volta a paz do dois.


- O dois é, de longe, o número mais adequado para a filosofia. O um é aquela coisa, é pouco. Ou então é tudo, definitivo demais, tudo incluído e resolvido. Não há motivo pra peleja. O um é totalitário, impositivo. O dois não. Ele é a base, a abstração que alicerça e possibilita todas as outras. O dois é a divisão inicial, é o começo essencial que ajuda a segurar a confusão que surge do três em diante. Isso é assunto longo, já perdi muito tempo pestanejando nisso, essa estória de número e filosofia mas, para resumir e não ficar com muita enrolação sobre inexistências, deixa eu ser direto. O dois é o melhor porque é muito mais simples. Pode chegar e dizer; “tudo tem dois lados”. Todo mundo entende de cara, acho que até intelectual entende, com uma certa dificuldade, e inúmeros “veja bem” mas entende. Diz “tudo tem três lados” ou então quatro pra ver. Está armada a celeuma (sempre quis usar essa palavra), benvinda complexidade sem fim. E, em boa parte da vezes, inútil. O dois dispensa grandes divagações. Dos Flinstones aos Jetsons, rica, pobre, amarelo, índio, aflita, pasmódico, doutor, montanhoso. Até assombração entende. Aliás, o que seria das assombrações sem o dois, sem o mundo de cá e o mundo de lá? O dois é pra todo mundo.


- Daí que até um mês e pouco, minha vida ia muito bem obrigado, ia seguindo seu caminhozinho honesto com a ajuda do Dois. Nasci, cresci e deitei pra descansar um pouquinho, sempre guiado por Dois. Claro, sempre tem um tropeço aqui outro ali, a certeza dá uma abaladinha, novas filosofias de boteco se fazem necessárias, se enfia um yin/yang aqui, uma guruzinha indiana acolá, enfim, vai se levando as coisas como o Dois quer e, aos poucos, tudo volta a sua dualidade governável. Só que daí eu cheguei aqui. São Gabriel da Cachoeira é de fazer o Kant despachar um ebó pro saci. É aquilo que eu tenho falado muito desde que cheguei nessa terra, por aqui é só abrir os olhos e bruvisleutronmaliqüidrun, o real se manifesta em um sem-número de ângulos e cores e tempos e formas e eu fico sem saber o que fazer, em estado de lisergia ininterrupta, em estado de “meu, mó energia” o tempo todo. Tem uma hora que começa a dar curto, fica tudo muito espirilático demais. Ainda bem que eu tive aquele sonho. Daí o dois voltou.

- Foi numa noite igual às outras que eu tenho passado aqui, rede armada na sala da minha amiga, a mata menos habitada do planeta (faz de conta que eu tô na Terra) zunindo lá fora e um filminho a cabo bem descartável só pra manter o constante paradoxo que é o mundo aqui. Peguei no sono. Daí um pouco ele chegou, envolto em uma misteriosa fumaça, ele mesmo na verdade era meio uma fumaça, um jogo de formas flutuantes hora vacilantes hora mais nítidas, sabe quando a fumaça do cigarro fica á contra luz, fumaça de incenso? Intão, daquele jeito lá só que mais encorpado de mistério, como se o cigarro tivesse em algum além invisível e só chegasse no sonho a fumaça dele, aquelas curvas meio desmanchadas só que desenhadinhas, qui nem eu já falei, meio dançando vagarosas ao som de flautas longínquas. Daí que nessa eu assustei um pouco. Num é que a forma etérea era o meu tio Joãozito! (que está vivinho da silva quero esclarecer). Pra ser bem exato, era meio o Joãozito, meio um jabuti (as estórias do meu tio Joãozito com jabutis são famosas em todo o Ceará) e, às vezes, dependendo do ângulo da fumaça, virava um desses pajés narigudos e de cara encurvada. Digo que me assustei porque é impossível não se assustar com um negócio desses acontecendo, acho que não é nem o caso de ficar explicando, e digo um pouco porque aqui em São Gabriel você aprende a economizar espanto, você se deslumbra mas num exagera porque senão falta energia pra próxima inquietação hipnótica que inevitavelmente ocorrerá de novo e em breve. Tem hora que eu vejo umas estórias aqui mas vou deixar pra perceber só mais tarde. Às vezes a noite tô me assustando com um negócio que eu vi na hora do almoço, às vezes até de outro dia. Aqui é tão maluco que é assim, o inesperado tem que entrar na fila e esperar o seu número ser chamado.
Mas deixa eu voltar pro João, grande jabuti de fumaça, pajé invisível e narigudo. Daí que eu fiquei lá na rede sem me mexer muito, vendo sem abrir os olhos o Joãozito se aproximar de mim, mais especificamente do meu ouvido direito e assoprar uma palavra. Assoprou e foi embora, se sumiu em suas próprias formas indo embora, se esvanecendo. Mas na hora exata que falou era ele certinho, até a verruga na cara tinha. E era também o jabuti já velho (acho que nem existe jabuti novo) e o tal do pajé, tudo meio misturado mas cada um na sua. Soprou no meu ouvido aquela palavra e foi embora e voltou lá para o antes do sonho, lá onde fica o incenso. Daí a palavra entrou pelo meu ouvido mas não fez som nenhum. Primeiro ela entrou e foi em outro lugar pra depois eu ouvir. Era fundo e vazio. Um oco de algum lugar lá no meu fim, lá na origem desse sonho, talvez nossa origem. Deitado na rede, na fumaça do pajé, onde minha origem toca o fim. O nosso. O antes. Foi de lá que veio a palavra.
Xibé.

*

- Xibé é o contraponto ao sempre instável, um halo vazio que envolve toda cor, é o silêncio perene ao fundo das múltiplas vozes e línguas. Xibé é a paz invencível que anda de mãos dadas com a esquizofrenia varanásica da vida em São Gabriel da Cachoeira. Xibé é a sombra e o silêncio. É quando se entra no rio aqui em São Gabriel, é quando se mergulha de olhos fechado no rio e tudo milagrosamente se acalma e tudo se apruma e adormece. E daí então você vê. Xibé te ajuda a ver. O antes. O mistério do rio aqui em São Gabriel não pode ser desvendado, mas você pode beber dele, guardá-lo junto com você. O antes. Uma das formas é conhecendo xibé. E daí então você vê.


-Xibé é o nome do alimento base do indígena que vive da roça. Água com farinha. E só. Mais simples impossível. Insosso e ralo. Xibé. No dentro do rio, no interior da cobra mítica, no oco da cuia, Xibé. Água e mandioca. Há milhares de anos os indígenas daqui se alimentam basicamente de xibé. Acho que não preciso dizer mais nada.

**

Xibé te ajuda a ver.

- Conversei com um Desana (esqueci o nome) que mora a mais de vinte dias de barco aqui de São Gabriel. Sua comunidade tem cerca de vinte pessoas. Nunca tinha vindo até a cidade. Ele falava pouco e sua voz era baixa. Como não falava muito, quase não conversamos, mas fiquei bastante sentado do lado dele, em silêncio. Era muito bom ficar ao lado dele, o silêncio dele era o silêncio da aldeia que fica há vinte dias de barco de São Gabriel e que só tem cerca de vinte pessoas. O silêncio dele tinha os barulhos dessa aldeia. Daí eu fiquei do lado dele para conhecer um pouco de sua aldeia. Daí eu entendi um pouco melhor o que os indígenas contam da Cobra Grande. No silêncio dele eu entendi. Uma hora eu perguntei o que ele estava achando daqui. Mostrou o braço e algumas pintinhas pretas bem pequenininhas. “Aqui são outros bichos que picam a gente”, e não falou mais nada. Ele falava pouco mesmo. Nos outros dois dias que encontrei com ele também foi assim, sentei perto dele mas quase não conversamos.

- Levaram um pataxó para a França na época do “Ano do Brasil” lá. Passou quinze dias andando por Paris. Daí perguntaram pra ele o que ele tinha achado da viagem. Ele respondeu que não estava acostumado a ficar tanto tempo sem pisar na terra.

- Daí eu conversando com um pataxó ele me contou que antes do mundo não tinha nada só água. Daí a água baixou e da terra nasceram três plantas. A mandioca, a abóbora e o pataxó.

- Outro dia tava no rio e sem querer entrei com um fósforo no bolso. Quando percebi tirei e joguei ele de lado, encima das pedras. Estava com minha amiga e ela comeu um pedação de mamão e deixou a casca de lado, encima das pedras. Daí estávamos falando de agrofloresta e eu estava com um bagaço de laranja na mão. Veio um menininho de cueca branca correndo e parou perto da gente. Ele pegou a caixa de fósforo e a casca de mamão e foi correndo lá pra frente. Depois os palitos viraram gente e a casca do mamão um barco. Eu joguei o bagaço de laranja na cabeça da Marília.

- No por do sol tem muita gente lavando roupa. As crianças menorzinhas ficam do lado da mãe brincando na água. Quando é por do sol tudo se enche de cores inexplicáveis. Tudo fica mais imenso ainda. A menininha brincava do lado da mãe, ela ficava batendo a mão no rio e dando risada. Daí uma hora a mãe fala pra meninininha com o sotaque carregado dos indígenas daqui. “Água, é água”. Depois voltou a lavar roupa. E tudo continuou imenso.

- Quando morre um ianomâmi, o corpo é cremado e enterrado durante um ano. Depois eles desenterram e misturam as cinzas em um tacho com mingau de banana verde. Durante um rito feito em homenagem aos mortos, os parentes daquele que foi comem o mingau. O parente então volta para perto.

Xibé.



segunda-feira, 11 de maio de 2009

Buenas! Muito bem camaradas, as coisas aqui por Barcelos continuam caminhando amazonicamente, tipo tartaruga desapressada, ou bicho de casco como eles dizem aqui. A cada dia estou mais adaptado à vida peixe com farinha e ao clima calor com frutas. E canal a cabo. E tem a rede, é claro. A rede, talvez tenha chegado a hora de embalar algumas bobagens sobre ela.


- Alguém se lembra aí de um filme chamado “A Mosca”, onde um fulano entra numa máquina com uma mosca e se funde com ela, daí começa a virar uma mosca gigante, um homem-mosca, um troço assim? Lembram? Então, acho que tá rolando isso entre mim e minha rede. Estou virando uma rede, um homem-rede, um troço assim. E como estou na Amazônia - que apesar de ser uma ficção não tem aquela máquina do filme e nem a necessidade de realizar tudo em apenas dois minutos - o processo é muito mais lento e natural. Aqui, na infinita intimidade entre mim e minha rede, o que rola é uma transmutação gradual e desobjetiva, uma transformação que segue o tempo leso da água, que caminha segundo a mitopoética natural de incorporação que irrompe da relação entre o ser humano e o mundo que o rodeia, nesse caso, uma rede puída e meio fedentinha.



-Uma das coisas que tem me chamado a atenção nessa história (faz tempo que tá rolando já, eu que não quis comentar nada) é que tenho feito o caminho inverso do grande símbolo universal da transformação, a bela borboleta que sai do casulo. Não que eu seja uma bela borboleta, longe disso, o negócio é com o casulo. Eu tenho me tornado o casulo. Dá até pra fazer uma correlação entre a liberdade da borboleta (qual o nome científico da borboleta, eu ia me sentir mais à vontade usando ele. Faz de conta que é cleróptos). Vou começar de novo: Dá até para fazer uma correlação entre a liberdade dos cleróptos e minha vida aqui na Amazônia, ambas não tem amarras, podem parar onde bem entender, “voar” para onde quiserem, essas coisas. Daí que eu tô fazendo o que o Manoel de Barros chama de “descomeçar”. Meu processo de transformação tá indo do clerópto (ficou legal né, clerópto, lê em voz alta pra ver, soa bem, se der, finge que está batendo asas enquanto fala, é ótimo, você se sente uma borboleta – ou um clerópto -mesmo, se não der pra fazer agora tenta depois, pelado (a) se rolar, de repente na hora do banho. Você vai se surpreender, é libertador) para o casulo. Ou seja, um descomeço. Aos poucos, estou me transformando na minha rede. Estou descomeçando, transmutando para trás, estou descaminhando para o refúgio inicial, para meu casulo originário, estou virando uma rede velha. Cada vez menos saio por aí cleróptando pra lá e pra cá, desperdiçando energia com movimentos desnecessários tipo se levantar, usar as pernas, essas coisas. Fica cada vez mais claro pra mim que isso não faz parte da minha essência de homem-rede, cada vez percebo com mais nitidez que nasci para ficar pendurado em uma varanda, em uma cozinha arejada ou entre duas árvores no meio da mata, testemunhando a fotossíntese. Nasci para passar cinco dias me apertando com duzentas irmãs, penduradas em um barco Belém-Manaus, oferecendo paz e descanso pelo puro prazer de ser eu mesma. Isso sim é que é vida. Se antes me vangloriava de passar muito tempo na rede, se antes eu tinha toda uma ética da rede, do passar o dia na rede, da rede como o lugar onde o ser alcança sua plenitude, onde o homem atinge o topo do caminho evolutivo e outros tantos filosofemas, agora sinto que essa fase foi superada. Já não há mais separação nem distância. Não há mais um algo a ser admirado. Aos poucos estou me fundindo ao meu objeto de adoração, me tornado um com ele, somos a mesma pele, as mesmas dobras, o mesmo objeto-síntese do repouso universal. Já não estou em uma rede, agora sou uma rede, sou a minha rede, a minha doce e despreocupada rede. Fico até emocionado de falar sobre isso. De um clerópto solto mas distante de seu dom para a unidade essencial com a mãe preguiça e seu colo ancestral.. Tá sendo um puta processo bonito...


-Daí, que esses dias notei que abriu um furinho na minha rede. Comecei a ficar preocupado, começa assim, um furinho, daqui a pouco ó, um puta rasgo e baubau rede. Deus me livre ficar sem rede. Olha como trem é sério, só de pensar em ficar sem rede, na próxima frase eu já boto Deus no meio do assunto. Fico preocupado, não tem jeito. Já ela, diferente de mim, não mostrou um pingo de preocupação em estar com um furinho e, porisso, mais próxima do fim. Continua a mesma, plena, senhora de si e do mundo, completamente absorta em sua condição de objeto perfeito só que agora com um furinho. Simples assim. Uma verdadeira lição. Vocês vão concordar comigo, uma rede preocupada é uma contradição de termos, uma rede nunca se preocupa, senão não é rede. E é porisso que nós, meros aprendizes na trabalhosa arte da preguiça essencial, vamos até ela. É para tentar adquirir essa sabedoria, essa despreocupação independente de tudo, de qualquer coisa ao seu redor. Nos dirigimos a ela para tentar reter um pouco da incomensurável paz que só a completa despreocupação oferecida por uma rede pode trazer. E vai aqui uma observação paralela. Budistas e meditabundos em geral que me perdoem, mas despreocupação completa e total, aquelas que eles esperam alcançar sentados no chão duro sem nadinha pra se escorar, só é possível mesmo na rede. Ou então, no mínimo, na rede é mais rápido e bem menos trabalhoso. Se tivesse rede no palácio do Gautama ele não tinha saído para se iluminar debaixo de uma árvore. Talvez de duas, mas aí ele ia pendurar uma rede. Para ser verdadeiramente despreocupado, tem que ter rede no meio. Aliás, aproveitando o ensejo, o verdadeiro caminho do meio é o caminho da rede. É ela que devia figurar nesses livros que se debruçam sobre a natureza da iluminação e do sentido último da vida. Nada de mandalas, cobrinhas comendo o próprio rabo e infinitos em espiral, o símbolo definitivo sobre o Tudo e o Nada é a rede. Nenhum ente é mais equilibrado e completo em si mesmo que uma rede bem pendurada. Mas tem uma coisa, se você quiser completar o cenário, se quiser realmente chegar no topo do topo da perfeição sossegativa, no ápice extremo da não-ação, daí é só colocar na rede o meu celebre tio-avô Joãozito (o melhor carteiro que o Vale do Jaguaribe já conheceu) e embaixo dela o seu cearencíssimo penico. Só de lembrar já sinto ondas de silêncio interior brotarem das profundezas do meu ser. Nem aquelas estátuas de pedra lá do Oriente são capazes de emanar tanta paz celestial. Meu tio Joãozito balangando em uma rede com seu imóvel penico branco por debaixo. , ali começa e termina o universo. Seres atormentados por milhares e milhares de encarnações na roda do Sansara, encontrariam o fim de suas milenares inquietações se pudessem conhecer o Joãozito, sua rede e seu penico. Deixa eu explicar melhor, é que esse meu tio é uma dessas reencarnações dos lamas ancestrais lá do Tibete, desses superpoderosos que a gente aqui do Ocidente nem imagina o quanto, mas como nessa última vida ele resoveu baixar no Ceará e conheceu a rede e o penico, acabou-se o motivo de sair levantando assim à toa, quem dirá pregando a paz por aí. Aliás, se a gente parar para analisar direitinho, sair por aí pregando a paz é sinal que ainda não se encerrou o ciclo, que no fundo ainda restam preocupações, nobres, nobilíssimas é verdade, mas ainda sim, preocupações. A chama da angústia ainda não se extinguiu. Eles, os budistas, vão chamar isso de compaixão. Pode até ser comovente e generoso num tanto inimaginável para um mero apegado a matéria como eu, mas a verdade é que ainda assim é uma preocupação. Iluminado mesmo, para mim, é o Joãozito, que alcançou o descomeço das eras e a absoluta despreocupação usando apenas uma rede e um penico. O tio Joãozito é o máximo.


- Pra vocês terem uma idéia, eu considero esse negócio de rede tão sério que, nesse ponto, até dos mineiros eu desconfio. Como é que pode aquela tranqüilidade toda se eles não costumam usar rede? Num sei não, ali tem coisa, não é possível. Eles devem ter redes escondidas em algum lugar, atrás da horta berando os pé de couve, ou lá pus meio do milharal, sei lá. Eu tenho pra mim que quando num tem ninguém olhando eles saem daquelas cócoras deles lá e vão se refugiar em alguma rede e pitá um paioso. Só pode ser, não tem outra explicação. Aliás, não vai ser hoje, mas ainda será escrito e um dia desses, um tratado sobre a união cósmica da rede com o cigarro de palha. Se a rede encerra a unidade do real, rede e cigarro de palha formam a dualidade perfeita, o princípio universal da complementariedade que habita em todas as coisas. Ma não são contrários, notem bem. O contrário da rede é a bicicleta. E dá-lhe mais um escrito. Mas, por enquanto, continuemos com a estória da despreocupação. Mesmo uma rede no hospital de uma zona de guerra ou em um campo de refugiados de um acidente escabroso desses aí, é uma rede despreocupada. Num tem jeito. Pode até ser uma rede mais austera, mais calejada e todas essas coisas para onde a vida extrema nos conduz, mas preocupada não, nunca. Daí que por isso tudo é que minha rede não está nem aí com o furinho que apareceu nela, continua lá, despreocupada como sempre. Mas eu estou preocupado, não posso negar. Pelo menos ainda. Pelo menos até a transmutação total, até a fusão completa entre mim e minha rede cinza de algodão. Tô chegano Nirvana, tô chegano...


Nossa gente, essa introduçãozinha já extrapolou seu limite. É que esse tema me fascina, daí eu me empolgo. Seria capaz de escrever centenas de páginas só de reflexões inspiradas na rede. Mas fica para outra feita, por agora é só isso, tô aqui em Barcelos me fundindo com uma rede e imaginando São Gabriel. Vamos aos fatos inventados.

*

Daí que um dia eu tava em São Paulo e resolvi escrever um poema sobre mim mesmo. Botei lá “pedraflor” e fiquei um tempo encima dele. Depois eu descobri que minha palavra inventada tinha sido chupinzada de um Leminsky que eu tinha lido, mas daí a imagem já tinha se desdobrado. Então dei thau pra originalidade e fiquei só com a auto- análise , entendi que sou meio pedraflor, cheio de extremos juntos. Tô dizendo isso por conta da vida aqui em Varanasi. Aqui na Ìndia a realidade é meio pedraflor, os extremos andam juntos o tempo todo. È mais até que pedraflor, é algo como peflodar ou flepador, é muito junto muito, junto pacaraio, é a mesma coisa, pra melhor dizer. Daí que antes dessas estórias da rede (o Joãozito é o máximo!), eu escrevi umas coisas durante essa semana que não tem nada a ver com o clima menino sensível no paraíso encantado dos índios. É o lado daqui de São Gabriel cheio de mazelas e cenas dantescas, uma realidade revoltante que dá vontade de matar chorar sumir. Daí que juntando o que tá encima com o que vocês vão ler aí embaixo, dá esse clima meio pedraflor. Aí resolvi botar essas linhas aqui no meio pra lembrar que, na verdade, é fradlepor. É tudo uma coisa só, as realidades se interpenetram e se afastam num movimento constante que confunde e deslumbra, mistura pterodátilos com meninas prostitutas, Shiva com macaxeira e invisível com materialismo dialético. São Gabriel da Cachoeira é inacreditável de tão existente, segue o seu veneno:


- Uma menina de 16 anos oferecendo a virgindade da irmãzinha de doze por duzentos reais aos taxistas e comerciantes locais. Muitos adolescentes cometendo pequenos e não tão pequenos crimes pra conseguir grana e comprar pasta base de cocaína. Inúmeros casos de violência contra mulher, alcoolismo pesadaço e abuso sexual dentro de casa. Indígenas que vem de longe buscar o Bolsa-família da comunidade toda e torram a grana na pingaiada de São Gabriel. Não sobra dinheiro nem pra voltar, quanto mais pra comprar comida. Fatos cotidianos que minha amiga relata para mim quase todo dia. Ela é psicóloga pela prefeitura e se divide em duas instituições diferentes. Sem tempo para se dedicar, acaba que não trabalha direito em nenhuma. Desde sempre está pedindo que contratem outros profissionais. Até hoje não foi atendida. Dizem que é por contenção de despesa. Dívidas feitas pela gestão passada...


- A noite de São Gabriel lembra o centro de São Paulo. E lembra mesmo, a ponto de eu me sentir como se estivesse em um daqueles boteco fulera debaixo do Minhocão. A noite aqui é muito mais Blade Runner que Manaus, Belém ou São Luis. Inclusive na aparência das ruas, na atmosfera de violência latente e nas meninas novinhas e super maquiadas que se oferecem em alguns pontos menos iluminados e estratégicos. Lembrem-se que estou em uma “cidadezinha” de vinte mil pessoas, boa parte indígena e que chegou a pouco tempo de suas comunidades de origem. Parece mentira, mas não é, são fenômenos reais, coisas do alto fluxo de capital e sua concentração na mão de poucos. Apesar de não ter turismo, acaba que São Gabriel tem uma coisas parecidas com essas vilinhas exploradas aí pelo Nordeste. No cartão postal, a estonteante duna do por-do-sol. Atrás da duna, Sodoma e Gomorra.

- O alcoolismo é um sério problema de saúde pública aqui de São Gabriel. Cenário comum daqui: um pequeno boteco improvisado em um barraco de madeira. Dentro dois ou três homens, um detrás de um pequeno balcão, os outros na frente. Sempre tem um a beira do nocaute, tortinho tortinho como a gente falava lá na Vila Sônia. Pequenos copos. Atrás do homem do balcão, vinte, trinta, quarenta (sei lá) garrafas da única coisa vendida ali, pinga 51. Tem vários desses barracos aqui. A cena impressiona, tirei até foto, a imagem é forte, posso garantir.


- Tem uns galpões construídos aqui que é onde os indígenas se “hospedam” quando vem da comunidade. Não passa de uma estrutura de alvenaria coberta com zinco, onde os indígenas armam suas redes. Não tem banheiro nem cozinha e o esquema da limpeza é beeem precário. Já a sede da maior ONG da cidade lembra um daqueles restaurantes chiques-exóticos do litoral Norte de São Paulo ou da Bahia: Vista privilegiada, arquitetura thop-thuras, todo feito em madeira trabalhada e palha regional no teto. Por dentro, redes, banquinhos artesanais e fotos suuuper bacanas dão uma atmosfera rústico-antropológica ao espaço. Predominam os tons pastéis. Ao lado, uns chalezinhos que oferecem conforto sem perder a simplicidade. O conjunto todo chama a atenção pelo bom gosto abaitolado e pelo desperdício de dinheiro com frescura. O Brasil é uma merda memo.

-A principal ONG de saúde da região é responsável pela assistência de boa parte das comunidades daqui. Só tem uma médica.

- De todos os grupos sociais que compõem os donos da grana em São Gabriel, os militares talvez sejam os que olham os indígenas com maior preconceito e filhadaputice racista. Os jovens da região se esforçam muito para entrar no exército. Além de um salário no fim do mês – coisa rara aqui, quase inexistente para indígenas – ser soldado dá status entre os jovens. Grana, prestígio e a pior ideologia que se possa imaginar, eis a fórmula da bomba. A grande maioria do exército aqui é composto por indígenas. Menos, é claro, nos cargos de comando.


- Os comerciantes graúdos da região não param de enriquecer. Desfilam pela cidade com picapes importadas e ouro de garimpo pendurado pelo corpo. Tem ligação com o tráfico internacional de coca e exercem influência decisiva nos rumos políticos daqui. Ah, e claro, são os principais clientes e articuladores da prostituição infantil na região.


- Conheci outro dia um cara que tinha passado dois anos escravizado pelo pessoal do tráfico. Não é raro isso por aqui, principalmente nesse mundão de comunidades que se estendem até a Colômbia. E é escravidão mesmo, com surra, cativeiro, fome e morte sua e da sua família sem precisar grandes motivos. A última que eu ouvi é que eles estão querendo matar todos os pajés da região. Assim abalam a coesão dos grupos indígenas e fica bem mais fácil aliciá-los. E ainda escapam dos castigos sobrenaturais. Diz que eles morrem de medo de feitiço.

Acho que já tá bom né. Desculpa o tamanho, ficou grande esse né. Dexa eu ir, depois eu volto. Saravá os cabôco. Até.

PS: Ah, e não esquece o lance do clerópto hein. É só bater asa e repetir: clerópto, clerópto. Pelado de preferência. Meu, mó energia.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Buenas! Intão, continuo aqui em Barcelos, inventando estórias sobre a cidade imaginária de nome São Gabriel da Cachoeira:



- Esses dias passei a tarde de conversa com o Esmeraldino, um figura de Maiá, a comunidade ianomâmi mais isolada da região. Como os ianomâmi são uma etnia que é conhecida aqui por seu jeito diferente - são bastante introspectivos e sensíveis, o que lhes confere um ar meio misterioso - essa comunidade de Maiá é sempre citada em uma atmosfera meio onírica, como um lugar onde se respira o ar dos ancestrais, onde sente-se de maneira muito presente a força dos “antigo” e do mundo espiritual dos índios. Daí que eu esbarrei com ele pela rua e começamos a papear, até que acabamos em casa onde tinha água, sombra e tapioca pra botar no açaí. Lá passamos quase o resto da tarde toda conversando, ele me falando da vida lá e eu contando de São Paulo, os dois impressionados. Até tentei procurar uma imagem no computador da minha amiga para mostrar para ele mas num achei. Me perguntou se São Paulo era maior que São Gabriel e o que tinha lá. Eu perguntei para ele se Maiá era um pouco parecido com São Gabriel e o que tinha lá. Enquanto isso tomamos açaí e fumamos trevo. Pra variar tava um puta dum calor e um sol de rachar a molera. Aqui é muito quente. Bebemos água. A gente tava na varanda. Eu falei que quero ir para Maiá conhecer o pessoal dele e a comunidade. Ele falou que se não tivesse família ia embora comigo pra São Paulo assim que eu voltasse. Ficou curioso de me ouvir falar e queria conhecer. Daí ele me contou um monte de estória, coisas da vida dele, de sua família e de suas comidas (ele me falou muito sobre comida). E me contou a estória da onça.


Deixa eu parar um pouco nesse momento e enfiar aqui uma digressão. Sabe que lá no Pará, andando com um caboclo no meio da mata, ele me falou de duas diferenças básicas entre o índio e o não índio quando estão no mato. A primeira é que o não-indígena abre trilha pra poder andar no mato, faz um trem meio reto e sem vegetação pra poder caminhar encima com segurança, enquanto o indígena anda sem abrir trilha nenhuma, tira uns matinho aqui e acolá, ranca um toquinho ou outro mais atrapalhoso e só. A outra diferença é que o não indígena costuma andar olhando para o chão, assim ele não sai da trilha nem tropeça ou pisa em alguma coisa que machuque, ou em algum bicho, essas coisas. O indígena anda olhando para cima, daí ele deduz o que está por baixo e também pode observar o que acontece no alto das árvores, ver caça, frutos e mel silvestre, por exemplo. Só olha pra baixo quando precisa, para ver rastro, merda de bicho, mato pisado, essas coisas. Daí que contar a estória do Esmeraldino me parece abrir uma trilha reta e só olhar para baixo (de bota zebu ainda por cima) onde outros vão descalço sem precisar tirar nada. Eu num tenho coragem não. É essa minha birra com a linguagem que a gente tá habituado, esse négócio tudo certinho, congelado parece. Dá impressão que eu tô com um lápis preto tentando desenhar a aurora boreal. Daí tira até o ânimo de contar as coisas. Eu sei que isso é papo intelectualóide e tal, mas pintassilgo, essa história tem me deixado atarantado viu, ô linguagenzinha sem sal, tem que tirar leite de pedra pra sair uma coisinha um pouco menos tosca. Tira a graça de tudo, credo, nunca vi.




Mas enfim, o cara contando é de uma presença, que mesmo falando um português todo quebrado (aliás, o jeito quebrado ajuda) você se transfere lá pro acontecimento dele, quando vê, você já está lá, no meio da estória. O baxinho era bom de causo viu. É o jeito dele se mexer quando contava, o modo de imitar com as mãos em movimento as patadas da onça . É o jeito solto de inventar num espaço vazio uma árvore e correr em volta dela como aconteceu lá no dia, só que com uma onça atrás dele girando junto (nessa hora eu lembrei dos desenhos do pica-pau). É a cara dele quando ele contou que percebeu que era uma onça. Antes ele achava que era um espírito da mata. “Aí eu fiquei triste, vi que era onça, fiquei triste”. Ficou triste? Fiquei imaginando onde, no meio da onça quase comendo ele, ele arrumou tempo pra ficar triste, donde eu venho tristeza é um troço meio vagaroso Daí que a estória não tem começo, meio e fim tudo certinho não, cada hora é uma parte, vai pulando daqui prali e volta tudo diferente. Às vezes é onça, às vezes é espírito, às vezes com espingarda às vezes sem, às vezes bravo às vezes triste, umas caras meio malucas, uns silêncios grandes também (aí fica o barulho da mata de fundo que acaba entrando na estória). Uma hora ela tava sentada no alto da árvore vendo ele passar, depois num tava mais, era um espírito, depois eles ficaram brigando até cansar, daí ele tava com fome, depois ele armou uma espingarda e praaa nos zóio da onça. Só sei que depois de ir e voltar um tanto de vezes, gesticular muito, imitar tristeza, árvore e barulho de espingarda, fazer silêncio quando imitou os parentes preocupados que ele não chegava (achavam que um espírito tinha roubado ele, daí ele fez o pessoal sentado no fim da tarde, tudo em silêncio, daí nessa hora eu juro que fui lá pro meio da roda dos parentes dele, impressionante), acabou que ele matou a tal da onça com um tiro na testa. Só que ele deixou ela lá, ninguém além dele viu a dita cuja, diz ele que dá azar levar para aldeia uma onça que tentou te matar. Mas ele contou pra todo mundo. Ah tá... Essa é boa, duas horas depois eu descubro que num tem ninguém que possa confirmar a estória, o que vale é o causo. Igualzinho aos caipira, só que completamente diferente. É cada uma... Depois dessa, nós ficamos mais um tempo lá, sentados na varanda da minha amiga, em silêncio e pitano. Depois a gente comeu mais açaí e foi embora, eu pro rio, ele pro alojamento indígena. Esmeraldino. Ele é filho de um dos três pajés de Maiá. Ele me falou que se eu aparecer por lá ele vai me dar muita banana. “Daí você come”, e fez com a mão como se estivesse comendo. Lá no rio fiquei lembrando dessas estórias dele. Mas depois parei. Quando você entra no rio aqui em São Gabriel, nada mais importa. Acho que no Ganges deve ser assim.

- E teve o Marcelo, um enferrneiro corintiano roxo que ficou contando as estripulias para conseguir ouvir os jogos do Corinthians lá no meio da área indígena. Vários jogos históricos do Timão ele passou enfiado no mato, sofrendo sozinho e ouvindo pedidos de escopetas e pasta-base de cocaína interferirem na transmissão. Falou de uma final (eu acho) que o Corinthiasn deu de sete a um. E ele lá isolado. Chorou, pôs a mão na cabeça e lembrou da Gaviões. Falou que nunca se sentiu tão sozinho na vida. No auge do desespero de torcedor, contou que até pedir rádio pras FARC o cara já pediu só pra não perder um jogo importante. Só podia ser corintiano.



- E sabe aquele lagarto grande que mais parecia um jacaré? Intão, era um jacaré mesmo. Mais duas aparições confirmaram. E o pior, ele só aparece na hora que tá passando Friends no canal a cabo. “É por causa da hora” deve pensar algum gaiato. É nada, é só mudar de canal que ele vai embora. Juro por Deus.



- Conheci o Israel, um tuiuca gente boa pra caramba. Acabou de chegar de São Paulo onde defendeu mestrado. Volta no mês que vem para defender o outro que escreveu em outra universidade. É isso mesmo, o cara escreveu dois mestrados ao mesmo tempo. E mais, como a esposa dele estava trabalhando muito, nesse tempo passava o dia todo cuidando sozinho do filho recém-nascido. Aqui em São Gabriel ele trabalha com os hupda, povo tradicionalmente discriminado e considerado inferior pelos próprios indígenas. Trabalha com eles para tentar mudar essa situação. Quando viu meu espanto com os tais dois mestrados me falou: “Não é difícil não, vocês gostam de enrolar muito e daí complica, eu sou muito direto, é só escrever o que eu sei, eu sou daqui, daí fica fácil”. Seus trabalhos são sobre fronteira. Ele é nascido em Pari-Cachoeira (dois dias de São Gabriel) em uma comunidade tuiuca; fez dois mestrados e cuidou do filho recém nascido, tudo junto morando em Guarulhos, Grande São Paulo. E ainda por cima, chama Israel. O cara manja de fronteira.



- Daí eu encontrei o Ladislau, um Tariana que é de uma das primeiras famílias a sair de comunidade e vir aqui para São Gabriel. Veio pra cá ainda menininho. Ele e o pai dele passaram um tempão me falando de como São Gabriel se fez nesses quarenta anos, os bairros que surgiram, os nordestinos que enriqueceram no comércio, no garimpo e no tráfico, como os igarapés foram sendo soterrados para servir de terreno para as novas casas. O Ladislau estuda à noite no EJA e vive discutindo com o professor de história que quer aprender a história da região e não a do Egito. Me pediu para eu ajudar ele a montar uma associação de agricultores e quer aprender a cultivar palmito. O pai dele tirava palmito do mato quando tava no meio da caça, mas nunca cultivou. Absurdo dos absurdos, São Gabriel não tem nada nem parecido com uma associação de agricultores. Quando soube que eu era psicólogo disse entender porque eu prestava tanta atenção no que ele falava, era pra saber se ele era louco. Eu disse que não, expliquei que eu gostava mesmo de ouvir as pessoas falarem da vida, ainda mais quando é tão diferente da minha. Ser psicólogo é bem mais que cuidar de loucos. Ser índio é bem mais que simplesmente manter tradições. Daí que estamos combinados, nem eu falo de surto psicótico, nem ele fala de rituais e pajelanças, nosso assunto predileto é política e palmito. Papo de gente doida.



-Essa semana morreu um menino de dezenove anos por exaustão em treinos no exército. O caso já está sendo devidamente abafado.



-Outro dia conheci três moleque no rio e fiquei lá jogando conversa fora e banhando:
- Ô, a Ana quer te conhecer.
- Que Ana?
- A Anaconda!!
Rárárá.



- Acho que é isso então. Depois eu volto.