segunda-feira, 4 de maio de 2009

Buenas! Intão, continuo aqui em Barcelos, inventando estórias sobre a cidade imaginária de nome São Gabriel da Cachoeira:



- Esses dias passei a tarde de conversa com o Esmeraldino, um figura de Maiá, a comunidade ianomâmi mais isolada da região. Como os ianomâmi são uma etnia que é conhecida aqui por seu jeito diferente - são bastante introspectivos e sensíveis, o que lhes confere um ar meio misterioso - essa comunidade de Maiá é sempre citada em uma atmosfera meio onírica, como um lugar onde se respira o ar dos ancestrais, onde sente-se de maneira muito presente a força dos “antigo” e do mundo espiritual dos índios. Daí que eu esbarrei com ele pela rua e começamos a papear, até que acabamos em casa onde tinha água, sombra e tapioca pra botar no açaí. Lá passamos quase o resto da tarde toda conversando, ele me falando da vida lá e eu contando de São Paulo, os dois impressionados. Até tentei procurar uma imagem no computador da minha amiga para mostrar para ele mas num achei. Me perguntou se São Paulo era maior que São Gabriel e o que tinha lá. Eu perguntei para ele se Maiá era um pouco parecido com São Gabriel e o que tinha lá. Enquanto isso tomamos açaí e fumamos trevo. Pra variar tava um puta dum calor e um sol de rachar a molera. Aqui é muito quente. Bebemos água. A gente tava na varanda. Eu falei que quero ir para Maiá conhecer o pessoal dele e a comunidade. Ele falou que se não tivesse família ia embora comigo pra São Paulo assim que eu voltasse. Ficou curioso de me ouvir falar e queria conhecer. Daí ele me contou um monte de estória, coisas da vida dele, de sua família e de suas comidas (ele me falou muito sobre comida). E me contou a estória da onça.


Deixa eu parar um pouco nesse momento e enfiar aqui uma digressão. Sabe que lá no Pará, andando com um caboclo no meio da mata, ele me falou de duas diferenças básicas entre o índio e o não índio quando estão no mato. A primeira é que o não-indígena abre trilha pra poder andar no mato, faz um trem meio reto e sem vegetação pra poder caminhar encima com segurança, enquanto o indígena anda sem abrir trilha nenhuma, tira uns matinho aqui e acolá, ranca um toquinho ou outro mais atrapalhoso e só. A outra diferença é que o não indígena costuma andar olhando para o chão, assim ele não sai da trilha nem tropeça ou pisa em alguma coisa que machuque, ou em algum bicho, essas coisas. O indígena anda olhando para cima, daí ele deduz o que está por baixo e também pode observar o que acontece no alto das árvores, ver caça, frutos e mel silvestre, por exemplo. Só olha pra baixo quando precisa, para ver rastro, merda de bicho, mato pisado, essas coisas. Daí que contar a estória do Esmeraldino me parece abrir uma trilha reta e só olhar para baixo (de bota zebu ainda por cima) onde outros vão descalço sem precisar tirar nada. Eu num tenho coragem não. É essa minha birra com a linguagem que a gente tá habituado, esse négócio tudo certinho, congelado parece. Dá impressão que eu tô com um lápis preto tentando desenhar a aurora boreal. Daí tira até o ânimo de contar as coisas. Eu sei que isso é papo intelectualóide e tal, mas pintassilgo, essa história tem me deixado atarantado viu, ô linguagenzinha sem sal, tem que tirar leite de pedra pra sair uma coisinha um pouco menos tosca. Tira a graça de tudo, credo, nunca vi.




Mas enfim, o cara contando é de uma presença, que mesmo falando um português todo quebrado (aliás, o jeito quebrado ajuda) você se transfere lá pro acontecimento dele, quando vê, você já está lá, no meio da estória. O baxinho era bom de causo viu. É o jeito dele se mexer quando contava, o modo de imitar com as mãos em movimento as patadas da onça . É o jeito solto de inventar num espaço vazio uma árvore e correr em volta dela como aconteceu lá no dia, só que com uma onça atrás dele girando junto (nessa hora eu lembrei dos desenhos do pica-pau). É a cara dele quando ele contou que percebeu que era uma onça. Antes ele achava que era um espírito da mata. “Aí eu fiquei triste, vi que era onça, fiquei triste”. Ficou triste? Fiquei imaginando onde, no meio da onça quase comendo ele, ele arrumou tempo pra ficar triste, donde eu venho tristeza é um troço meio vagaroso Daí que a estória não tem começo, meio e fim tudo certinho não, cada hora é uma parte, vai pulando daqui prali e volta tudo diferente. Às vezes é onça, às vezes é espírito, às vezes com espingarda às vezes sem, às vezes bravo às vezes triste, umas caras meio malucas, uns silêncios grandes também (aí fica o barulho da mata de fundo que acaba entrando na estória). Uma hora ela tava sentada no alto da árvore vendo ele passar, depois num tava mais, era um espírito, depois eles ficaram brigando até cansar, daí ele tava com fome, depois ele armou uma espingarda e praaa nos zóio da onça. Só sei que depois de ir e voltar um tanto de vezes, gesticular muito, imitar tristeza, árvore e barulho de espingarda, fazer silêncio quando imitou os parentes preocupados que ele não chegava (achavam que um espírito tinha roubado ele, daí ele fez o pessoal sentado no fim da tarde, tudo em silêncio, daí nessa hora eu juro que fui lá pro meio da roda dos parentes dele, impressionante), acabou que ele matou a tal da onça com um tiro na testa. Só que ele deixou ela lá, ninguém além dele viu a dita cuja, diz ele que dá azar levar para aldeia uma onça que tentou te matar. Mas ele contou pra todo mundo. Ah tá... Essa é boa, duas horas depois eu descubro que num tem ninguém que possa confirmar a estória, o que vale é o causo. Igualzinho aos caipira, só que completamente diferente. É cada uma... Depois dessa, nós ficamos mais um tempo lá, sentados na varanda da minha amiga, em silêncio e pitano. Depois a gente comeu mais açaí e foi embora, eu pro rio, ele pro alojamento indígena. Esmeraldino. Ele é filho de um dos três pajés de Maiá. Ele me falou que se eu aparecer por lá ele vai me dar muita banana. “Daí você come”, e fez com a mão como se estivesse comendo. Lá no rio fiquei lembrando dessas estórias dele. Mas depois parei. Quando você entra no rio aqui em São Gabriel, nada mais importa. Acho que no Ganges deve ser assim.

- E teve o Marcelo, um enferrneiro corintiano roxo que ficou contando as estripulias para conseguir ouvir os jogos do Corinthians lá no meio da área indígena. Vários jogos históricos do Timão ele passou enfiado no mato, sofrendo sozinho e ouvindo pedidos de escopetas e pasta-base de cocaína interferirem na transmissão. Falou de uma final (eu acho) que o Corinthiasn deu de sete a um. E ele lá isolado. Chorou, pôs a mão na cabeça e lembrou da Gaviões. Falou que nunca se sentiu tão sozinho na vida. No auge do desespero de torcedor, contou que até pedir rádio pras FARC o cara já pediu só pra não perder um jogo importante. Só podia ser corintiano.



- E sabe aquele lagarto grande que mais parecia um jacaré? Intão, era um jacaré mesmo. Mais duas aparições confirmaram. E o pior, ele só aparece na hora que tá passando Friends no canal a cabo. “É por causa da hora” deve pensar algum gaiato. É nada, é só mudar de canal que ele vai embora. Juro por Deus.



- Conheci o Israel, um tuiuca gente boa pra caramba. Acabou de chegar de São Paulo onde defendeu mestrado. Volta no mês que vem para defender o outro que escreveu em outra universidade. É isso mesmo, o cara escreveu dois mestrados ao mesmo tempo. E mais, como a esposa dele estava trabalhando muito, nesse tempo passava o dia todo cuidando sozinho do filho recém-nascido. Aqui em São Gabriel ele trabalha com os hupda, povo tradicionalmente discriminado e considerado inferior pelos próprios indígenas. Trabalha com eles para tentar mudar essa situação. Quando viu meu espanto com os tais dois mestrados me falou: “Não é difícil não, vocês gostam de enrolar muito e daí complica, eu sou muito direto, é só escrever o que eu sei, eu sou daqui, daí fica fácil”. Seus trabalhos são sobre fronteira. Ele é nascido em Pari-Cachoeira (dois dias de São Gabriel) em uma comunidade tuiuca; fez dois mestrados e cuidou do filho recém nascido, tudo junto morando em Guarulhos, Grande São Paulo. E ainda por cima, chama Israel. O cara manja de fronteira.



- Daí eu encontrei o Ladislau, um Tariana que é de uma das primeiras famílias a sair de comunidade e vir aqui para São Gabriel. Veio pra cá ainda menininho. Ele e o pai dele passaram um tempão me falando de como São Gabriel se fez nesses quarenta anos, os bairros que surgiram, os nordestinos que enriqueceram no comércio, no garimpo e no tráfico, como os igarapés foram sendo soterrados para servir de terreno para as novas casas. O Ladislau estuda à noite no EJA e vive discutindo com o professor de história que quer aprender a história da região e não a do Egito. Me pediu para eu ajudar ele a montar uma associação de agricultores e quer aprender a cultivar palmito. O pai dele tirava palmito do mato quando tava no meio da caça, mas nunca cultivou. Absurdo dos absurdos, São Gabriel não tem nada nem parecido com uma associação de agricultores. Quando soube que eu era psicólogo disse entender porque eu prestava tanta atenção no que ele falava, era pra saber se ele era louco. Eu disse que não, expliquei que eu gostava mesmo de ouvir as pessoas falarem da vida, ainda mais quando é tão diferente da minha. Ser psicólogo é bem mais que cuidar de loucos. Ser índio é bem mais que simplesmente manter tradições. Daí que estamos combinados, nem eu falo de surto psicótico, nem ele fala de rituais e pajelanças, nosso assunto predileto é política e palmito. Papo de gente doida.



-Essa semana morreu um menino de dezenove anos por exaustão em treinos no exército. O caso já está sendo devidamente abafado.



-Outro dia conheci três moleque no rio e fiquei lá jogando conversa fora e banhando:
- Ô, a Ana quer te conhecer.
- Que Ana?
- A Anaconda!!
Rárárá.



- Acho que é isso então. Depois eu volto.

4 comentários:

  1. Eu ainda não entendi o que é esse lugar, mas tô encantada com as histórias.
    Parece que você também não entendeu, então tá tudo certo.
    Tô adorando acompanhar essa viagem doida (e vai ser viagem assim lá em São Gabriel da Cachoeira...)beijao!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Obrigada por dividir a experiência. Quem sabe não postamos algo juntos em breve.. hehe. Senti falta de imagens nesse blog para confrontar aquelas que construi na minha cabeça. beijo

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  4. hahahah! esses minino!
    ô, pergunta aí pros ianomamis o que eles fazem quando o umbigo do nenê cai? Pergunta pro rio também. É importante.

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