sexta-feira, 22 de maio de 2009

Buenas! Estou em dias filosóficos. Numérico-filosóficos. Tô querendo retornar ao dois. São Gabriel é um balaio de gato excitado, tudo ao mesmo tempo agora uma coisa de cada vez. Tá doido, assim ninguém guenta, é necessário arrumar as coisas. Pelo menos um pouquinho. Chega de um zilhão manifestado de mil maneiras no mesmo instante. Eu quero de volta a paz do dois.


- O dois é, de longe, o número mais adequado para a filosofia. O um é aquela coisa, é pouco. Ou então é tudo, definitivo demais, tudo incluído e resolvido. Não há motivo pra peleja. O um é totalitário, impositivo. O dois não. Ele é a base, a abstração que alicerça e possibilita todas as outras. O dois é a divisão inicial, é o começo essencial que ajuda a segurar a confusão que surge do três em diante. Isso é assunto longo, já perdi muito tempo pestanejando nisso, essa estória de número e filosofia mas, para resumir e não ficar com muita enrolação sobre inexistências, deixa eu ser direto. O dois é o melhor porque é muito mais simples. Pode chegar e dizer; “tudo tem dois lados”. Todo mundo entende de cara, acho que até intelectual entende, com uma certa dificuldade, e inúmeros “veja bem” mas entende. Diz “tudo tem três lados” ou então quatro pra ver. Está armada a celeuma (sempre quis usar essa palavra), benvinda complexidade sem fim. E, em boa parte da vezes, inútil. O dois dispensa grandes divagações. Dos Flinstones aos Jetsons, rica, pobre, amarelo, índio, aflita, pasmódico, doutor, montanhoso. Até assombração entende. Aliás, o que seria das assombrações sem o dois, sem o mundo de cá e o mundo de lá? O dois é pra todo mundo.


- Daí que até um mês e pouco, minha vida ia muito bem obrigado, ia seguindo seu caminhozinho honesto com a ajuda do Dois. Nasci, cresci e deitei pra descansar um pouquinho, sempre guiado por Dois. Claro, sempre tem um tropeço aqui outro ali, a certeza dá uma abaladinha, novas filosofias de boteco se fazem necessárias, se enfia um yin/yang aqui, uma guruzinha indiana acolá, enfim, vai se levando as coisas como o Dois quer e, aos poucos, tudo volta a sua dualidade governável. Só que daí eu cheguei aqui. São Gabriel da Cachoeira é de fazer o Kant despachar um ebó pro saci. É aquilo que eu tenho falado muito desde que cheguei nessa terra, por aqui é só abrir os olhos e bruvisleutronmaliqüidrun, o real se manifesta em um sem-número de ângulos e cores e tempos e formas e eu fico sem saber o que fazer, em estado de lisergia ininterrupta, em estado de “meu, mó energia” o tempo todo. Tem uma hora que começa a dar curto, fica tudo muito espirilático demais. Ainda bem que eu tive aquele sonho. Daí o dois voltou.

- Foi numa noite igual às outras que eu tenho passado aqui, rede armada na sala da minha amiga, a mata menos habitada do planeta (faz de conta que eu tô na Terra) zunindo lá fora e um filminho a cabo bem descartável só pra manter o constante paradoxo que é o mundo aqui. Peguei no sono. Daí um pouco ele chegou, envolto em uma misteriosa fumaça, ele mesmo na verdade era meio uma fumaça, um jogo de formas flutuantes hora vacilantes hora mais nítidas, sabe quando a fumaça do cigarro fica á contra luz, fumaça de incenso? Intão, daquele jeito lá só que mais encorpado de mistério, como se o cigarro tivesse em algum além invisível e só chegasse no sonho a fumaça dele, aquelas curvas meio desmanchadas só que desenhadinhas, qui nem eu já falei, meio dançando vagarosas ao som de flautas longínquas. Daí que nessa eu assustei um pouco. Num é que a forma etérea era o meu tio Joãozito! (que está vivinho da silva quero esclarecer). Pra ser bem exato, era meio o Joãozito, meio um jabuti (as estórias do meu tio Joãozito com jabutis são famosas em todo o Ceará) e, às vezes, dependendo do ângulo da fumaça, virava um desses pajés narigudos e de cara encurvada. Digo que me assustei porque é impossível não se assustar com um negócio desses acontecendo, acho que não é nem o caso de ficar explicando, e digo um pouco porque aqui em São Gabriel você aprende a economizar espanto, você se deslumbra mas num exagera porque senão falta energia pra próxima inquietação hipnótica que inevitavelmente ocorrerá de novo e em breve. Tem hora que eu vejo umas estórias aqui mas vou deixar pra perceber só mais tarde. Às vezes a noite tô me assustando com um negócio que eu vi na hora do almoço, às vezes até de outro dia. Aqui é tão maluco que é assim, o inesperado tem que entrar na fila e esperar o seu número ser chamado.
Mas deixa eu voltar pro João, grande jabuti de fumaça, pajé invisível e narigudo. Daí que eu fiquei lá na rede sem me mexer muito, vendo sem abrir os olhos o Joãozito se aproximar de mim, mais especificamente do meu ouvido direito e assoprar uma palavra. Assoprou e foi embora, se sumiu em suas próprias formas indo embora, se esvanecendo. Mas na hora exata que falou era ele certinho, até a verruga na cara tinha. E era também o jabuti já velho (acho que nem existe jabuti novo) e o tal do pajé, tudo meio misturado mas cada um na sua. Soprou no meu ouvido aquela palavra e foi embora e voltou lá para o antes do sonho, lá onde fica o incenso. Daí a palavra entrou pelo meu ouvido mas não fez som nenhum. Primeiro ela entrou e foi em outro lugar pra depois eu ouvir. Era fundo e vazio. Um oco de algum lugar lá no meu fim, lá na origem desse sonho, talvez nossa origem. Deitado na rede, na fumaça do pajé, onde minha origem toca o fim. O nosso. O antes. Foi de lá que veio a palavra.
Xibé.

*

- Xibé é o contraponto ao sempre instável, um halo vazio que envolve toda cor, é o silêncio perene ao fundo das múltiplas vozes e línguas. Xibé é a paz invencível que anda de mãos dadas com a esquizofrenia varanásica da vida em São Gabriel da Cachoeira. Xibé é a sombra e o silêncio. É quando se entra no rio aqui em São Gabriel, é quando se mergulha de olhos fechado no rio e tudo milagrosamente se acalma e tudo se apruma e adormece. E daí então você vê. Xibé te ajuda a ver. O antes. O mistério do rio aqui em São Gabriel não pode ser desvendado, mas você pode beber dele, guardá-lo junto com você. O antes. Uma das formas é conhecendo xibé. E daí então você vê.


-Xibé é o nome do alimento base do indígena que vive da roça. Água com farinha. E só. Mais simples impossível. Insosso e ralo. Xibé. No dentro do rio, no interior da cobra mítica, no oco da cuia, Xibé. Água e mandioca. Há milhares de anos os indígenas daqui se alimentam basicamente de xibé. Acho que não preciso dizer mais nada.

**

Xibé te ajuda a ver.

- Conversei com um Desana (esqueci o nome) que mora a mais de vinte dias de barco aqui de São Gabriel. Sua comunidade tem cerca de vinte pessoas. Nunca tinha vindo até a cidade. Ele falava pouco e sua voz era baixa. Como não falava muito, quase não conversamos, mas fiquei bastante sentado do lado dele, em silêncio. Era muito bom ficar ao lado dele, o silêncio dele era o silêncio da aldeia que fica há vinte dias de barco de São Gabriel e que só tem cerca de vinte pessoas. O silêncio dele tinha os barulhos dessa aldeia. Daí eu fiquei do lado dele para conhecer um pouco de sua aldeia. Daí eu entendi um pouco melhor o que os indígenas contam da Cobra Grande. No silêncio dele eu entendi. Uma hora eu perguntei o que ele estava achando daqui. Mostrou o braço e algumas pintinhas pretas bem pequenininhas. “Aqui são outros bichos que picam a gente”, e não falou mais nada. Ele falava pouco mesmo. Nos outros dois dias que encontrei com ele também foi assim, sentei perto dele mas quase não conversamos.

- Levaram um pataxó para a França na época do “Ano do Brasil” lá. Passou quinze dias andando por Paris. Daí perguntaram pra ele o que ele tinha achado da viagem. Ele respondeu que não estava acostumado a ficar tanto tempo sem pisar na terra.

- Daí eu conversando com um pataxó ele me contou que antes do mundo não tinha nada só água. Daí a água baixou e da terra nasceram três plantas. A mandioca, a abóbora e o pataxó.

- Outro dia tava no rio e sem querer entrei com um fósforo no bolso. Quando percebi tirei e joguei ele de lado, encima das pedras. Estava com minha amiga e ela comeu um pedação de mamão e deixou a casca de lado, encima das pedras. Daí estávamos falando de agrofloresta e eu estava com um bagaço de laranja na mão. Veio um menininho de cueca branca correndo e parou perto da gente. Ele pegou a caixa de fósforo e a casca de mamão e foi correndo lá pra frente. Depois os palitos viraram gente e a casca do mamão um barco. Eu joguei o bagaço de laranja na cabeça da Marília.

- No por do sol tem muita gente lavando roupa. As crianças menorzinhas ficam do lado da mãe brincando na água. Quando é por do sol tudo se enche de cores inexplicáveis. Tudo fica mais imenso ainda. A menininha brincava do lado da mãe, ela ficava batendo a mão no rio e dando risada. Daí uma hora a mãe fala pra meninininha com o sotaque carregado dos indígenas daqui. “Água, é água”. Depois voltou a lavar roupa. E tudo continuou imenso.

- Quando morre um ianomâmi, o corpo é cremado e enterrado durante um ano. Depois eles desenterram e misturam as cinzas em um tacho com mingau de banana verde. Durante um rito feito em homenagem aos mortos, os parentes daquele que foi comem o mingau. O parente então volta para perto.

Xibé.



3 comentários:

  1. Como é bom poder respirar estas palavras numa manhã de chuva do norte (que não pára no Pará!)
    Xibé prôce!

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  2. esse sonho do joãozito, jabuti e pajé, da nuvem de cigarro contra a luz, incenso, me lembrou a história do pai, filho, espírito santo. essa assunto de xibé, me lembrou chuá, ximbó, chchchiiiiixxxxéééé. clerópto, clerópto, eoô.






    .

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  3. xibé é vida!
    xibé é saúde!
    xibé é o bicho!

    com xibé tudo da pé!

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