segunda-feira, 11 de maio de 2009

Buenas! Muito bem camaradas, as coisas aqui por Barcelos continuam caminhando amazonicamente, tipo tartaruga desapressada, ou bicho de casco como eles dizem aqui. A cada dia estou mais adaptado à vida peixe com farinha e ao clima calor com frutas. E canal a cabo. E tem a rede, é claro. A rede, talvez tenha chegado a hora de embalar algumas bobagens sobre ela.


- Alguém se lembra aí de um filme chamado “A Mosca”, onde um fulano entra numa máquina com uma mosca e se funde com ela, daí começa a virar uma mosca gigante, um homem-mosca, um troço assim? Lembram? Então, acho que tá rolando isso entre mim e minha rede. Estou virando uma rede, um homem-rede, um troço assim. E como estou na Amazônia - que apesar de ser uma ficção não tem aquela máquina do filme e nem a necessidade de realizar tudo em apenas dois minutos - o processo é muito mais lento e natural. Aqui, na infinita intimidade entre mim e minha rede, o que rola é uma transmutação gradual e desobjetiva, uma transformação que segue o tempo leso da água, que caminha segundo a mitopoética natural de incorporação que irrompe da relação entre o ser humano e o mundo que o rodeia, nesse caso, uma rede puída e meio fedentinha.



-Uma das coisas que tem me chamado a atenção nessa história (faz tempo que tá rolando já, eu que não quis comentar nada) é que tenho feito o caminho inverso do grande símbolo universal da transformação, a bela borboleta que sai do casulo. Não que eu seja uma bela borboleta, longe disso, o negócio é com o casulo. Eu tenho me tornado o casulo. Dá até pra fazer uma correlação entre a liberdade da borboleta (qual o nome científico da borboleta, eu ia me sentir mais à vontade usando ele. Faz de conta que é cleróptos). Vou começar de novo: Dá até para fazer uma correlação entre a liberdade dos cleróptos e minha vida aqui na Amazônia, ambas não tem amarras, podem parar onde bem entender, “voar” para onde quiserem, essas coisas. Daí que eu tô fazendo o que o Manoel de Barros chama de “descomeçar”. Meu processo de transformação tá indo do clerópto (ficou legal né, clerópto, lê em voz alta pra ver, soa bem, se der, finge que está batendo asas enquanto fala, é ótimo, você se sente uma borboleta – ou um clerópto -mesmo, se não der pra fazer agora tenta depois, pelado (a) se rolar, de repente na hora do banho. Você vai se surpreender, é libertador) para o casulo. Ou seja, um descomeço. Aos poucos, estou me transformando na minha rede. Estou descomeçando, transmutando para trás, estou descaminhando para o refúgio inicial, para meu casulo originário, estou virando uma rede velha. Cada vez menos saio por aí cleróptando pra lá e pra cá, desperdiçando energia com movimentos desnecessários tipo se levantar, usar as pernas, essas coisas. Fica cada vez mais claro pra mim que isso não faz parte da minha essência de homem-rede, cada vez percebo com mais nitidez que nasci para ficar pendurado em uma varanda, em uma cozinha arejada ou entre duas árvores no meio da mata, testemunhando a fotossíntese. Nasci para passar cinco dias me apertando com duzentas irmãs, penduradas em um barco Belém-Manaus, oferecendo paz e descanso pelo puro prazer de ser eu mesma. Isso sim é que é vida. Se antes me vangloriava de passar muito tempo na rede, se antes eu tinha toda uma ética da rede, do passar o dia na rede, da rede como o lugar onde o ser alcança sua plenitude, onde o homem atinge o topo do caminho evolutivo e outros tantos filosofemas, agora sinto que essa fase foi superada. Já não há mais separação nem distância. Não há mais um algo a ser admirado. Aos poucos estou me fundindo ao meu objeto de adoração, me tornado um com ele, somos a mesma pele, as mesmas dobras, o mesmo objeto-síntese do repouso universal. Já não estou em uma rede, agora sou uma rede, sou a minha rede, a minha doce e despreocupada rede. Fico até emocionado de falar sobre isso. De um clerópto solto mas distante de seu dom para a unidade essencial com a mãe preguiça e seu colo ancestral.. Tá sendo um puta processo bonito...


-Daí, que esses dias notei que abriu um furinho na minha rede. Comecei a ficar preocupado, começa assim, um furinho, daqui a pouco ó, um puta rasgo e baubau rede. Deus me livre ficar sem rede. Olha como trem é sério, só de pensar em ficar sem rede, na próxima frase eu já boto Deus no meio do assunto. Fico preocupado, não tem jeito. Já ela, diferente de mim, não mostrou um pingo de preocupação em estar com um furinho e, porisso, mais próxima do fim. Continua a mesma, plena, senhora de si e do mundo, completamente absorta em sua condição de objeto perfeito só que agora com um furinho. Simples assim. Uma verdadeira lição. Vocês vão concordar comigo, uma rede preocupada é uma contradição de termos, uma rede nunca se preocupa, senão não é rede. E é porisso que nós, meros aprendizes na trabalhosa arte da preguiça essencial, vamos até ela. É para tentar adquirir essa sabedoria, essa despreocupação independente de tudo, de qualquer coisa ao seu redor. Nos dirigimos a ela para tentar reter um pouco da incomensurável paz que só a completa despreocupação oferecida por uma rede pode trazer. E vai aqui uma observação paralela. Budistas e meditabundos em geral que me perdoem, mas despreocupação completa e total, aquelas que eles esperam alcançar sentados no chão duro sem nadinha pra se escorar, só é possível mesmo na rede. Ou então, no mínimo, na rede é mais rápido e bem menos trabalhoso. Se tivesse rede no palácio do Gautama ele não tinha saído para se iluminar debaixo de uma árvore. Talvez de duas, mas aí ele ia pendurar uma rede. Para ser verdadeiramente despreocupado, tem que ter rede no meio. Aliás, aproveitando o ensejo, o verdadeiro caminho do meio é o caminho da rede. É ela que devia figurar nesses livros que se debruçam sobre a natureza da iluminação e do sentido último da vida. Nada de mandalas, cobrinhas comendo o próprio rabo e infinitos em espiral, o símbolo definitivo sobre o Tudo e o Nada é a rede. Nenhum ente é mais equilibrado e completo em si mesmo que uma rede bem pendurada. Mas tem uma coisa, se você quiser completar o cenário, se quiser realmente chegar no topo do topo da perfeição sossegativa, no ápice extremo da não-ação, daí é só colocar na rede o meu celebre tio-avô Joãozito (o melhor carteiro que o Vale do Jaguaribe já conheceu) e embaixo dela o seu cearencíssimo penico. Só de lembrar já sinto ondas de silêncio interior brotarem das profundezas do meu ser. Nem aquelas estátuas de pedra lá do Oriente são capazes de emanar tanta paz celestial. Meu tio Joãozito balangando em uma rede com seu imóvel penico branco por debaixo. , ali começa e termina o universo. Seres atormentados por milhares e milhares de encarnações na roda do Sansara, encontrariam o fim de suas milenares inquietações se pudessem conhecer o Joãozito, sua rede e seu penico. Deixa eu explicar melhor, é que esse meu tio é uma dessas reencarnações dos lamas ancestrais lá do Tibete, desses superpoderosos que a gente aqui do Ocidente nem imagina o quanto, mas como nessa última vida ele resoveu baixar no Ceará e conheceu a rede e o penico, acabou-se o motivo de sair levantando assim à toa, quem dirá pregando a paz por aí. Aliás, se a gente parar para analisar direitinho, sair por aí pregando a paz é sinal que ainda não se encerrou o ciclo, que no fundo ainda restam preocupações, nobres, nobilíssimas é verdade, mas ainda sim, preocupações. A chama da angústia ainda não se extinguiu. Eles, os budistas, vão chamar isso de compaixão. Pode até ser comovente e generoso num tanto inimaginável para um mero apegado a matéria como eu, mas a verdade é que ainda assim é uma preocupação. Iluminado mesmo, para mim, é o Joãozito, que alcançou o descomeço das eras e a absoluta despreocupação usando apenas uma rede e um penico. O tio Joãozito é o máximo.


- Pra vocês terem uma idéia, eu considero esse negócio de rede tão sério que, nesse ponto, até dos mineiros eu desconfio. Como é que pode aquela tranqüilidade toda se eles não costumam usar rede? Num sei não, ali tem coisa, não é possível. Eles devem ter redes escondidas em algum lugar, atrás da horta berando os pé de couve, ou lá pus meio do milharal, sei lá. Eu tenho pra mim que quando num tem ninguém olhando eles saem daquelas cócoras deles lá e vão se refugiar em alguma rede e pitá um paioso. Só pode ser, não tem outra explicação. Aliás, não vai ser hoje, mas ainda será escrito e um dia desses, um tratado sobre a união cósmica da rede com o cigarro de palha. Se a rede encerra a unidade do real, rede e cigarro de palha formam a dualidade perfeita, o princípio universal da complementariedade que habita em todas as coisas. Ma não são contrários, notem bem. O contrário da rede é a bicicleta. E dá-lhe mais um escrito. Mas, por enquanto, continuemos com a estória da despreocupação. Mesmo uma rede no hospital de uma zona de guerra ou em um campo de refugiados de um acidente escabroso desses aí, é uma rede despreocupada. Num tem jeito. Pode até ser uma rede mais austera, mais calejada e todas essas coisas para onde a vida extrema nos conduz, mas preocupada não, nunca. Daí que por isso tudo é que minha rede não está nem aí com o furinho que apareceu nela, continua lá, despreocupada como sempre. Mas eu estou preocupado, não posso negar. Pelo menos ainda. Pelo menos até a transmutação total, até a fusão completa entre mim e minha rede cinza de algodão. Tô chegano Nirvana, tô chegano...


Nossa gente, essa introduçãozinha já extrapolou seu limite. É que esse tema me fascina, daí eu me empolgo. Seria capaz de escrever centenas de páginas só de reflexões inspiradas na rede. Mas fica para outra feita, por agora é só isso, tô aqui em Barcelos me fundindo com uma rede e imaginando São Gabriel. Vamos aos fatos inventados.

*

Daí que um dia eu tava em São Paulo e resolvi escrever um poema sobre mim mesmo. Botei lá “pedraflor” e fiquei um tempo encima dele. Depois eu descobri que minha palavra inventada tinha sido chupinzada de um Leminsky que eu tinha lido, mas daí a imagem já tinha se desdobrado. Então dei thau pra originalidade e fiquei só com a auto- análise , entendi que sou meio pedraflor, cheio de extremos juntos. Tô dizendo isso por conta da vida aqui em Varanasi. Aqui na Ìndia a realidade é meio pedraflor, os extremos andam juntos o tempo todo. È mais até que pedraflor, é algo como peflodar ou flepador, é muito junto muito, junto pacaraio, é a mesma coisa, pra melhor dizer. Daí que antes dessas estórias da rede (o Joãozito é o máximo!), eu escrevi umas coisas durante essa semana que não tem nada a ver com o clima menino sensível no paraíso encantado dos índios. É o lado daqui de São Gabriel cheio de mazelas e cenas dantescas, uma realidade revoltante que dá vontade de matar chorar sumir. Daí que juntando o que tá encima com o que vocês vão ler aí embaixo, dá esse clima meio pedraflor. Aí resolvi botar essas linhas aqui no meio pra lembrar que, na verdade, é fradlepor. É tudo uma coisa só, as realidades se interpenetram e se afastam num movimento constante que confunde e deslumbra, mistura pterodátilos com meninas prostitutas, Shiva com macaxeira e invisível com materialismo dialético. São Gabriel da Cachoeira é inacreditável de tão existente, segue o seu veneno:


- Uma menina de 16 anos oferecendo a virgindade da irmãzinha de doze por duzentos reais aos taxistas e comerciantes locais. Muitos adolescentes cometendo pequenos e não tão pequenos crimes pra conseguir grana e comprar pasta base de cocaína. Inúmeros casos de violência contra mulher, alcoolismo pesadaço e abuso sexual dentro de casa. Indígenas que vem de longe buscar o Bolsa-família da comunidade toda e torram a grana na pingaiada de São Gabriel. Não sobra dinheiro nem pra voltar, quanto mais pra comprar comida. Fatos cotidianos que minha amiga relata para mim quase todo dia. Ela é psicóloga pela prefeitura e se divide em duas instituições diferentes. Sem tempo para se dedicar, acaba que não trabalha direito em nenhuma. Desde sempre está pedindo que contratem outros profissionais. Até hoje não foi atendida. Dizem que é por contenção de despesa. Dívidas feitas pela gestão passada...


- A noite de São Gabriel lembra o centro de São Paulo. E lembra mesmo, a ponto de eu me sentir como se estivesse em um daqueles boteco fulera debaixo do Minhocão. A noite aqui é muito mais Blade Runner que Manaus, Belém ou São Luis. Inclusive na aparência das ruas, na atmosfera de violência latente e nas meninas novinhas e super maquiadas que se oferecem em alguns pontos menos iluminados e estratégicos. Lembrem-se que estou em uma “cidadezinha” de vinte mil pessoas, boa parte indígena e que chegou a pouco tempo de suas comunidades de origem. Parece mentira, mas não é, são fenômenos reais, coisas do alto fluxo de capital e sua concentração na mão de poucos. Apesar de não ter turismo, acaba que São Gabriel tem uma coisas parecidas com essas vilinhas exploradas aí pelo Nordeste. No cartão postal, a estonteante duna do por-do-sol. Atrás da duna, Sodoma e Gomorra.

- O alcoolismo é um sério problema de saúde pública aqui de São Gabriel. Cenário comum daqui: um pequeno boteco improvisado em um barraco de madeira. Dentro dois ou três homens, um detrás de um pequeno balcão, os outros na frente. Sempre tem um a beira do nocaute, tortinho tortinho como a gente falava lá na Vila Sônia. Pequenos copos. Atrás do homem do balcão, vinte, trinta, quarenta (sei lá) garrafas da única coisa vendida ali, pinga 51. Tem vários desses barracos aqui. A cena impressiona, tirei até foto, a imagem é forte, posso garantir.


- Tem uns galpões construídos aqui que é onde os indígenas se “hospedam” quando vem da comunidade. Não passa de uma estrutura de alvenaria coberta com zinco, onde os indígenas armam suas redes. Não tem banheiro nem cozinha e o esquema da limpeza é beeem precário. Já a sede da maior ONG da cidade lembra um daqueles restaurantes chiques-exóticos do litoral Norte de São Paulo ou da Bahia: Vista privilegiada, arquitetura thop-thuras, todo feito em madeira trabalhada e palha regional no teto. Por dentro, redes, banquinhos artesanais e fotos suuuper bacanas dão uma atmosfera rústico-antropológica ao espaço. Predominam os tons pastéis. Ao lado, uns chalezinhos que oferecem conforto sem perder a simplicidade. O conjunto todo chama a atenção pelo bom gosto abaitolado e pelo desperdício de dinheiro com frescura. O Brasil é uma merda memo.

-A principal ONG de saúde da região é responsável pela assistência de boa parte das comunidades daqui. Só tem uma médica.

- De todos os grupos sociais que compõem os donos da grana em São Gabriel, os militares talvez sejam os que olham os indígenas com maior preconceito e filhadaputice racista. Os jovens da região se esforçam muito para entrar no exército. Além de um salário no fim do mês – coisa rara aqui, quase inexistente para indígenas – ser soldado dá status entre os jovens. Grana, prestígio e a pior ideologia que se possa imaginar, eis a fórmula da bomba. A grande maioria do exército aqui é composto por indígenas. Menos, é claro, nos cargos de comando.


- Os comerciantes graúdos da região não param de enriquecer. Desfilam pela cidade com picapes importadas e ouro de garimpo pendurado pelo corpo. Tem ligação com o tráfico internacional de coca e exercem influência decisiva nos rumos políticos daqui. Ah, e claro, são os principais clientes e articuladores da prostituição infantil na região.


- Conheci outro dia um cara que tinha passado dois anos escravizado pelo pessoal do tráfico. Não é raro isso por aqui, principalmente nesse mundão de comunidades que se estendem até a Colômbia. E é escravidão mesmo, com surra, cativeiro, fome e morte sua e da sua família sem precisar grandes motivos. A última que eu ouvi é que eles estão querendo matar todos os pajés da região. Assim abalam a coesão dos grupos indígenas e fica bem mais fácil aliciá-los. E ainda escapam dos castigos sobrenaturais. Diz que eles morrem de medo de feitiço.

Acho que já tá bom né. Desculpa o tamanho, ficou grande esse né. Dexa eu ir, depois eu volto. Saravá os cabôco. Até.

PS: Ah, e não esquece o lance do clerópto hein. É só bater asa e repetir: clerópto, clerópto. Pelado de preferência. Meu, mó energia.

5 comentários:

  1. Vou tentar no meu próximo banho.
    quanto à Rede.... não rola agulha e linha em São Gabriel...? Beijos da tua prima preferida!!

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  2. eiiiiiiiiii.... fiquei com ciúmes. Tudo bem, é o seguinte: hj no meu chá das cinco - leia-se merenda de pão com ovo e presunto e cafe com leite - estava conversando com uns amigos justamente sobre a graça da vida em cima da rede. Não é curioso isso? Já inclusive enviei o link para ele. Posta imagem, por favor!

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  3. salve salve as lembranças do tio joãozito. Cheguei hj das margens do rio jaguaribe, cheim, cheim , com tanta chuva. Tirei um cochilo numa rede ouvindo o riacho passando na rua, quase que invadindo a casa do papai.

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  4. Bom, por recomendação do autor fiz o tal do teste clerópto mas com algumas radicalizações: tudo isso de pé na rede!
    E para confirmar a tal da situação "flopedar" caí com a cara no chão!
    Sem comentários...
    Pelo menos não furou a rede!

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  5. as borboletas são lepidópteros!
    os clerópteros são padres homosexuais que se pintam e se enfeitam em demasia! ahahahah

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